Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Zip! Zip!

A cada anoitecer de sábado, Dalmir não cabia em si de alegria. Era a hora de fazer a contabilidade da semana de sua barbearia. Há seis meses, ele deixou de trabalhar em um salão maior e abriu seu próprio negócio, junto com os dois filhos, aos quais ensinara o ofício.

Estava instalado em uma loja de um pequeno shopping, muito bem localizado em um bairro de classe média alta da zona sul de Belo Horizonte. O número de clientes era crescente, e já dava para ter certeza de que o pequeno empreendimento ia vingar. Aluguéis pagos sem atraso, financiamento das três cadeiras em dia e dinheiro garantido para o sustento da família.

A clientela era predominantemente formada por homens, mas havia também muitas crianças, levadas por babás, mães e avós.

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Os jornais e revistas espalhados no salão traziam todo tipo de notícia. Num sábado pela manhã, um cliente de cabelo e bigode lia uma reportagem sobre o filme “Que horas ela volta”, da diretora Anna Muylaert, indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro.

-- Você viu esse filme, Dalmir? Indagou o cliente.

-- Vi não, mas sei que é a história de uma doméstica que mora na casa da patroa rica, não é?, respondeu.

-- Sim e não. Na verdade, é muito mais do que isso. O filme merece o prêmio que já ganhou no Festival de Berlim. Ele fala das mudanças na sociedade brasileira nos últimos anos, explicou o cliente.

-- Eu não tenho dúvida de que tem muita coisa mudando, especialmente para os mais pobres.

-- Inclusive as oportunidades. No filme, por exemplo, a filha da empregada passa no vestibular da USP; e o filho da madame não! Mas ele retrata outras coisas bem brasileiras, que mostram essa nova realidade do país. E, nesses tempos de legalização da profissão de doméstica, o filme traz muitas situações para se pensar.

-- Eu sei como é...

-- Não vou te contar mais nada, para você assistir. Mas presta atenção numa cena: quando a Val, a empregada, finalmente entra na piscina da casa da patroa. Tem muita coisa interessante ali, disse o cliente. E indagou:

-- Dalmir, e o que você acha disso tudo que está acontecendo no Brasil?

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Nesse instante, o barbeiro interrompeu os movimentos de corte, os braços ainda erguidos. Uma mão segurava a tesoura, e a outra, o pente. Deixou o olhar se perder para fora do salão, na galeria do shopping, onde muita gente circulava naquela bela manhã de sábado.

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Uma dona de casa puxava um carrinho de feira e tinha 12 mil na poupança da Caixa; um ajudante de pizzaria levava sacos pretos de lixo para a calçada, com três meses de atraso na pensão do filho, somando mais de 1.500; um motorista de executivo passava o cartão eletrônico da empresa, do qual ele tinha a senha, onde havia 2 milhões aplicados em renda fixa; uma estudante ia para a aula de inglês, feliz com o depósito de 5 mil que a avó fizera em sua conta corrente; uma empregada doméstica voltava da padaria, satisfeita por já ter 500 na poupança e não usar mais os 600 do cheque especial. 

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O pensamento de Dalmir foi longe e voltou, enquanto a cena do corte de cabelo parecia congelada por instantes.

Ele disse então, pausadamente, sem pressa, com o serviço em andamento:

-- Olha, eu não vi o filme, mas sei o que você quer dizer, pois escuto muita história aqui. E vou te contar uma coisa. Aqui nesse salão, eu tenho cortado cabelo de muita gente. De todos os tipos sociais. Vem também muita madame rica, trazendo seus filhos ou netos. E estou vendo como muitas delas estão se sentindo ... como posso dizer... elas andam assim, meio revoltadas.

-- Como assim?

-- É o seguinte. Vou tentar resumir. No meio da conversa, o assunto sempre aparece: como está difícil manter e, mais ainda, conseguir novas babás para tomar conta dos filhos.

 -- Ficou mais complicado, com a nova lei...?

-- Sim, mas a questão não é bem essa. As madames estão mantendo as babás... mas elas reclamam do seguinte: do jeito que as coisas estão indo, as filhas das babás não vão mais ser as babás dos filhos dos seus filhos, como sempre acontecia. Entende? Esse é o problema para elas.

-- E essa revolta vem daí?

-- Esse é o ponto! O problema não é faltar babá. Mas acontece que a filha da babá, agora, está indo para a faculdade... ela não quer mais ser babá como a mãe...

 -- Igualzinho ao filme...

-- Exatamente. Por isso estou te contando isso.

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Do lado de fora do salão, continuava passando gente, cada um carregando seu destino. Menino com mesada de 200, pedreiro com salário de 1.700. Dona de loja com crédito de 30 mil no Banco do Brasil. Porteiro de shopping devendo 800 para agiota. Dono de Porsche com 5 milhões aplicados no Tesouro Direto. 

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Dalmir prosseguia sua narrativa, tentando não terminar o corte do cliente:

-- Elas rodeiam, rodeiam e acabam falando mal dessa situação, colocando a culpa no governo. E falam mesmo: ‘Do jeito que está indo, quem vai tomar conta do meu neto, daqui a uns anos? Esse povo agora quer até fazer faculdade!’ E citam essa “quantidade de cursos” que está aparecendo com esses “financiamentos com dinheiro público”.

-- Mas é só pagar mais que novas babás vão aparecer, será que não?, indaga o cliente.

-- Sei lá. Não posso ter certeza. O que sei mesmo é essa coisa que estou te falando, da revolta.

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Dalmir parou novamente para pensar, esticou o olhar bem longe e esboçou um meio sorriso com o que vinha na lembrança.

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Lá fora, na avenida, passou um ônibus conduzido por um motorista novo na linha, que tinha deixado de ser manobrista de garagem da empresa e passou a ganhar 2.200. Com o acerto, ia receber 5 mil e pagar dívidas de 3 mil. Ia sobrar 2 mil para ir passar férias na praia com a família. 

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O barbeiro continuou com o meio sorriso na ponta dos lábios. E foi dizendo, lentamente, como que fazendo suspense de final de filme...

-- Mas tem ainda uma... uma não, duas coisas que estão incomodando mais ainda essas donas... uma coisa mais séria e um detalhe que piora tudo!

-- A primeira coisa...

-- É o seguinte: as babás, além de não prepararem mais as filhas para serem babás, estão vindo trabalhar de carro! E muitas delas têm carro igual ao do filho da patroa...!

-- É o Brasil mudando, Dalmir, apesar da crise... e qual é o detalhe...?

 Dalmir foi para o meio do salão, como um ator ensaiando uma cena. Largou a tesoura, e fingiu segurar um pequeno objeto com a mão direita, entre o dedão e o indicador. Fez um movimento com os dedos, como se apertasse um pequeno botão em direção de uma suposta porta de carro.

-- Pode parecer bobagem, mas o que está pegando também, eu percebi nos comentários de três delas, é isso...

E completou, emitindo um som entre os lábios:

- Zip! Zip!

-- E isso é o que, cara?

-- As madames falam: ‘Sabe, a porta do carro da minha empregada agora abre que nem a do meu... com aquele controle eletrônico, que faz... Zip! Zip!’.

sábado, 24 de outubro de 2015

Saudades do futuro

De repente, Eurídice compreendeu tudo. Tudo mesmo.

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Estava de pé diante daquela mulher de uniforme, que lhe oferecia um sorriso bem treinado para aqueles momentos. Suas pernas frágeis fraquejaram, e seu corpo tremia por dentro, prestes a desabar. Seus pequenos olhos tão vívidos se umedeceram rapidamente.

Ela olhava para aquele rosto que insistia em lhe sorrir, mas só conseguia ver cenas de sua vida passando em velocidade por sua mente. Flashes rápidos, mas muito nítidos, vividos ao longo de seus 89 anos.

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Cerca de meio século antes daquele momento, em uma noite muito especial, Eurídice e o marido tiraram da caixa bem guardada as taças coloridas. Iriam fazer um brinde para comemorar a compra da casinha com a qual tanto sonharam. Iam pagar o empréstimo do banco por muitos anos, mas valia a pena. O marido estava meio doente, e combinaram de já deixar, por escrito, a casa como herança para a filha única deles.


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Por mais de trinta anos, Eurídice e o marido foram muito felizes na casinha de paredes cor de rosa e muitas plantas nas pequenas janelas pintadas de azul. Havia gatos dos vizinhos, passarinhos ao redor e sapos verdes que pulavam da caixa d’água.

Eles namoravam na varanda e tinham uma conversa preferida: como era boa aquela sensação de serem felizes juntos. Simplesmente, juntos, mesmo com as dificuldades da vida. Como as preocupações com a falta de dinheiro da família da filha única, que agora já tinha uma filha única.

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Numa manhã de primavera, o marido de Eurídice não amanheceu mais. Ela já esperava por aquele dia, mas, mesmo assim, se deixou chorar muito, o tanto que o coração poderia querer.

Ainda ao lado daquele corpo que era também tão dela, Eurídice prometeu a ele que faria tudo para continuar a ser feliz, como se estivessem para sempre juntos.

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Depois da missa de 30º dia, a família da filha veio morar com ela. Rapidamente, a rotina da casa mudou muito. Ela cedeu o quarto de casal para a filha e passou a dividir o outro menor com a neta única. O marido da filha começou a fazer umas reformas na casa, tirando o jardim para abrir uma garagem. Forrou o teto e espantou os gatos.

Ele assistia à TV deitado no único sofá da sala, com o som muito alto e a cerveja do lado. Às vezes, Eurídice captava o olhar da filha observando o marido com uma ponta de repulsa. Aquela percepção afiada, que só as mães que amam os filhos conseguem ter.

No domingo, os amigos do marido vinham para o churrasco que ia até à noite, com muito pagode, deixando restos de tudo por todos os lados. Eurídice acabava ajudando a arrumar a casa ainda bem cedo na segunda, antes de clarear e de a filha sair para trabalhar.

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Uma noite, ouviu o marido gritando alto com a filha no quarto. Depois, escutou dois barulhos secos. Torceu para que não fossem nas costas, pois poderiam aleijar.

No outro dia, Eurídice se mudou para o quartinho dos fundos, depois do quintal, onde ficava a mesa de passar roupa e havia uma cama velha, mas aconchegante. Queria ficar longe de tudo. À noite, lembrava-se da promessa que fizera ao marido e ganhava forças para o dia seguinte.

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Um dia, o marido da filha chegou com uns papéis em casa. Depois do jantar, pegou a pasta, entregou para a esposa e disse:

-- Tá tudo aí. Conversa com ela depois. 

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No dia, seguinte, a filha foi no quartinho da mãe e explicou tudo. O marido queria vender a casa, para dar entrada num apartamento em um bairro melhor. Era menor, porém, mais novo e longe da violência daquela região. Estava tudo certinho, era só ela assinar.

Eurídice não teve reação. Só procurou, com os olhinhos finos, os olhos da filha diante dela – mas não os encontrou.

Passou parte da noite olhando para os papéis em cima da mesinha. Dormiu mal, mas sonhou muito. Sonhou com o marido assoviando para os passarinhos; sonhou com o susto engraçado que tomou no dia em que ele caiu da escada enquanto pintava a parede da frente.

Sonhou com a vergonha gostosa que teve no dia que eles resolveram jantar nus, morrendo de rir e de medo de alguém espreitar pela janela. Como foi bom segurar o rosto dele com as duas mãos, beijá-lo com força e senti-lo tão intensamente naquela noite!

Sonhou com eles sonhando acordados na varanda, fazendo força juntos para puxar para dentro de casa a corda pesada da felicidade. Por fim, lembrou-se da manhã de sol em que ele deixara de sonhar para sempre.

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Eurídice acordou cedo no dia seguinte, mas ficou no seu canto, esperando o marido da filha sair para trabalhar. Tinha pensado muito. Estava cansada e não tinha como sobreviver sem a filha e a família da filha. Muito menos morar sozinha. E, afinal, a casa seria mesmo de herança. Estaria apenas adiantando as coisas. Tinha a sensação de que o tal o apartamento seria apertado, mas, o que fazer, tão frágil, às vésperas dos 90 anos...?

Pela manhã, deixou os papéis assinados na mesa da sala.

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No dia da mudança, Eurídice arrumou suas coisas em duas malas. Uma caixa com papéis, fotos e recordações completava sua bagagem. Era muito pouco, pensou, para quem viveu 50 anos ali. Mas era, realmente, tudo que tinha, além de pensamentos e lembranças.

No início da tarde, o motorista do caminhão de mudança ligou o motor. Os ajudantes fecharam o baú. Estava tudo lá dentro.

Ou quase tudo.

Só sobraram as duas malas e a caixa de Eurídice, que foram colocadas pelo marido da filha no porta-malas do carro da família, onde cabiam com folga.

Quando o carro deu a partida, Eurídice, do banco de trás, não resistiu e olhou de soslaio para a varanda da casa. Tomou um susto. Teve a clara sensação de que alguém estava ali, inerte e de pé, com o corpo vencido pelo tempo, observando-a partir.

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Depois de passar por muitas ruas e avenidas, o carro do marido da filha parou diante de uma casa branca com murinho na frente. Eurídice olhou em volta. Não havia prédio algum ali.

Sem dizer nada, o marido da filha saiu do carro, abriu o porta-malas, tirou os pertences de Eurídice e levou até a varanda casa, onde uma mulher de uniforme o aguardava.

A filha abriu a porta de trás do carro e continuava sem conseguir olhar para a mãe. Apenas falou, pegando-a pelo braço:

-- Mãe, a senhora vai ficar aqui hoje. Depois a gente conversa... 

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De repente, Eurídice compreendeu tudo. Tudo mesmo.

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Estava de pé diante daquela mulher de uniforme, que lhe oferecia um sorriso bem treinado para aqueles momentos. Suas pernas frágeis fraquejaram e seu corpo tremia por dentro, prestes a desabar. Seus pequenos olhos tão vívidos se umedeceram rapidamente.

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Eurídice ouviu o carro partir. A mulher bem determinada convidou-a para conhecer a casa. Falou que ela iria dividir o quarto com outras duas idosas, muito simpáticas e brincalhonas.

 E que ela teria tudo ali. Roupa lavada, café da manhã, almoço e jantar. Duas frutas por dia. Revistas, telefone no horário comercial e novela na TV. Às dez da noite, todas as luzes eram apagadas. Mas haveria visitas de crianças do grupo escolar aos domingos. Além de festa de Natal e bolo com parabéns no aniversário. Tudo repleto de amor e carinho.

Por fim, a mulher perguntou:

-- A senhora gostaria de ter mais alguma coisa?

Eurídice nunca imaginava que tudo poderia ser tão rápido. E como as coisas também se encaixavam com toda a lógica da vida.

Pela primeira vez, sentiu como se não tivesse mais nada por dentro. Só a carcaça, quebradiça e terminal.

Como as paredes em ruínas de uma casa abandonada.

Apenas falou:

-- Sim... gostaria de ter... saudades do futuro.

domingo, 4 de outubro de 2015

Só por uma vez...

Dayane foi acordada, antes das sete, por uma ponta de sol que trespassava a janela vermelha, de madeira carcomida, do quarto que há um mês ocupava no hotel. Sentia um gosto amargo na boca, de resto de Bacardi ainda da noite anterior. Seu rosto denunciava sua juventude sofrida.

Desceu para tomar café com leite e pão com manteiga no bar da esquina da Avenida Santos Dumont, que funcionava 24 horas e tinha suas regras, como a do cartaz mal escrito na parede: “Proibido vender bebida alcóolica antes das nove”.

Ela ficou olhando para o nada enquanto o café esfriava um pouco. Estava com o corpo dolorido do dia anterior. Foram mais de oito homens, só depois das cinco da tarde, quando chegou ao hotel. Passara o dia pesquisando os preços dos cursos de enfermagem em várias faculdades da cidade.

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Rodolfo também foi acordado por uma fresta de luz, que entrava pela cortina da janela do ônibus. Quando despertou de vez, já estava na rodoviária, no centro de BH. Tinha o hálito forte de cigarro de palha e cachaça ruim, que fumara e bebera nas três paradas desde que saíra de Almenara. A barba estava mal feita, os dentes ruins e os cabelos, esbranquiçados.

Apesar da idade, ia procurar emprego na capital, mas não tinha pressa. Passou a noite, entre dormindo e acordado, pensando em procurar alguma mulher “bem torneada” perto da rodoviária.

Depois de descer do ônibus, só com a mochila de mão, foi andando por uma avenida grande, com duas pistas largas só para ônibus. Parou num bar de esquina para tomar café com pão. O dinheiro estava contado, mas tinha de dar para pagar a mulher.

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Muita gente passava apressada diante do bar. Alguns tomavam um café rápido e caminhavam, decididos, para lugar qualquer. Mulheres dos hotéis da região já estavam procurando um cliente qualquer. Camelôs vendiam de tudo por todo lado. O dono do bar não via ninguém, só tomava conta do dinheiro que entrava. Vidas seguiam seus destinos, perdidas na confusão do centro da cidade.

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Rodolfo viu a moça de cabelo negro e vistoso quase ao seu lado, no balcão. Percorreu-lhe o corpo com o olhar viciado de sempre. Ela retribuiu-lhe a atenção, sem disfarçar desejo forçado. Ele lhe mandou um meio sorriso.

Dayane sentiu que o cliente era dela. Ainda era cedo para começar a trabalhar, mas estava juntando dinheiro para tentar a faculdade. Sempre antes de dormir, finalmente a sós, imaginava-se trabalhando de branco à noite, em um hospital de gente bacana.

Sem perder tempo, ela se aproximou dele, no balcão ainda vazio, oferecendo-lhe o sorriso comercial. De leve, roçou o corpo nas pernas daquele homem, que perguntou sem rodeios:

-- Quanto é o programa, mulhé? 

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Atravessaram a rua em direção ao hotel, que ficava ao lado de um cine privê, onde homens e mulheres se misturavam ao longo do dia, todos os dias, num enredo difuso entre realidade e fantasia.

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No começo, Dayane achava muito estranho ser usada por tantos homens em um mesmo dia. Mas o estranhamento foi virando rotina, assim como tudo o que eles faziam ou pediam que ela fizesse.

No quarto, o homem acendeu um cigarro e foi tirando a roupa, enquanto ela fazia o mesmo. A intimidade inevitável surgia do nada. Ele a tomou pela cintura, sentindo sua pele lisa em seu corpo rude e castigado pelo sol. Passou por ela suas mãos pouco afeitas a carinhos. Estava afoito e disse, com a voz rouca de nicotina:

-- Quero te sentir nos meus braços, mulhé. Mesmo que seja só por uma vez. 

Havia algo comum entre eles, além do cheiro de resto de álcool. Horas atrás, poderiam parecer velhos conhecidos, perdidos numa noite suja, cada um em seu caminho.

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Ela não tinha uma casa e muito menos um lar. Na única cama do único quarto de sua vida, deixou aquele homem vindo do nada saciar-se enquanto quis. Depois de tudo, ele acendeu outro cigarro, deitado ao lado dela.

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Foi quando, de repente, ela viu.

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E sua alma estremeceu. Ao olhar para o pé direito daquele homem, viu que ele não tinha o dedão. No lugar, apenas uma cicatriz grosseira e suja. Rodolfo percebeu o que ela olhava e disse, distraído:

-- Não se assuste com o meu pé. É estranho, mas já me acostumei. Perdi o dedão com uma machadada errada que dei na roça. Faz muito tempo, sabe... 

Dayane esquecera o corpo doído e foi se assustando por dentro e por fora. Queria cobrir a nudez e não olhar para aquele homem que continuava falando:

-- Não deu para salvar o dedo. Na hora, estava só eu e minha filhinha de quatro anos, numa roça pra lá de Almenara. Coitada, ela não tinha como buscar socorro... 

Dayane sentia verdadeiro pavor dentro daquele quarto cada vez menor e mais apertado. Ainda teve força para perguntar:

-- E... onde está... sua filha...?? 

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Fora do hotel, o sol esquentava o asfalto e as calçadas, por onde passava tanta gente despossuída de destino.

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A pergunta de Dayane fez Rodolfo olhar fundo para o branco do teto mal pintado. Ele tragou forte o cigarro e falou:

-- Num sei de minha filhinha, não. Ela saiu de casa e sumiu no mundo com a mãe, há muito tempo. 

Dayane tentava segurar os cabelos com as mãos, que tremiam, descontroladas. Foi saindo do quarto devagar para não ser vista. Mas ainda ouviu aquele homem já não estranho dizendo:

-- Num sei mesmo o paradeiro da minha filha... mas, vou te falar, mulhé... daria tudo para poder abraçá-la de novo. Nem que fosse só por uma vez! 

***

Já no corredor, indo para lugar algum, Dayane passou pela vizinha de quarto, que lhe perguntou brincando:

-- Cliente novo no pedaço!? 

-- Sim... quer dizer... não!, disse Dayane, sem conseguir mais conter as lágrimas, que nunca tinham escorrido naquele maldito hotel.

Mal ouvindo a própria voz, ainda falou, mais para si do que para a outra:

 -- Ele... um dia... 

-- Um dia... ele já foi meu pai.

sábado, 19 de setembro de 2015

É preciso saber viver

Sábado, seis da tarde. Hora de fechar o salão. Ia ser mais um fim de semana como os outros. Cada uma delas iria para sua casa – para cuidar do marido e dos filhos.

Mas não foi.

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Maria das Graças, a dona do salão, não tinha pressa de ir embora, apesar de morar quase ao lado. O marido fora ao Mineirão com os amigos ver o “galão” jogar e só chegaria bem tarde. Resolveu chamar as “meninas” – as três manicures que trabalhavam com ela – para uma cerveja.

Karina topou. O marido fora pescar com os amigos e só voltaria à noite. Stefânia também. Estava livre. O marido avisou que iria levar o carro ao lava-jato do amigo, onde ficariam tomando cerveja. Ingride sabia que o marido estava em casa, mas apagado, como acontecia sempre aos sábados, depois da feijoada na casa da mãe.

As três eram mais ou menos vizinhas, e uma foi indicando a outra para o salão. Era para ser tipo bico de final de semana, mas acabou que estavam trabalhando só lá.

Karina teve uma filha aos dezesseis anos e veio com ela para Belo Horizonte, onde conheceu o marido. Ingride ficou viúva antes mesmo de casar, aos 21 anos, quando o noivo foi morto pela polícia. Estava casada agora há quatro anos e lutava muito para manter a casa e o marido alcoólatra. Stefânia foi morar com um dos irmãos gêmeos, que a abandonou – e ela acabou se juntando com o outro gêmeo.

Todas elas eram muito jovens, mas tinham um rastro de tristeza precoce no fundo do olhar. Das Graças sentia isso e estava sempre tentando jogar as meninas “para cima”.

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Naquele final de tarde, em vez de ir ao bar ao lado, elas resolveram trazer cerveja e tira-gosto para o salão. De repente, sentiram uma alegria não planejada. Riam e arrumaram a mesa de bar improvisada.

Foi quando Das Graças falou:

-- Meninas, ontem ouvi no rádio uma propaganda – acho que de um plano de saúde –, que começava com uma pergunta assim: o que te faz querer viver? Sabe, essa frase ficou na minha cabeça e eu queria fazer a mesma pergunta pra vocês.

As meninas foram pegas meio de surpresa, mas já estavam animadas pela cerveja. No bar ao lado, alguém ligou a jukebox no último volume, escolhendo um pout pourri com os maiores sucessos do Rei Roberto.

 Elas ficaram meio em silêncio, pensando na pergunta. Ingride foi a primeira a falar, sentada meio de lado, com as pernas cruzadas, na cadeira branca de cortar cabelo, deixando as sandálias de dedo no chão.

--Então, eu achava que o que me faria querer ser feliz... seria poder ouvir sempre uma declaração de amor, muito linda, do meu maridão. Mas isso não tem acontecido...

-- Ah, mas você tá querendo muito!, brincou uma das amigas

Do bar ao lado, vinha a voz do Roberto.

... eu tenho tanto, para lhe falar, mas com palavras, não sei dizer... 

-- Caramba, mas ele não fala mais nada de bonito, argumentou Ingride.

...como é grande, o meu amor, por você... 

Karina já estava no segundo copo de cerveja e entrou na conversa.

-- Olha só, eu não sou muito vivida, mas o que tinha vontade mesmo... Como é a pergunta? O que me faria querer viver? Ah, era ter meu maridão só para mim, deitar com ele e morrer de amor... mas ele não quer mais saber disso, entende...?

... vou cavalgar por toda noite, por uma estrada colorida, usar meus beijos como açoite, e a minha mão mais atrevida... 

-- Queria que fosse para sempre como era no começo... ele com aqueles braços fortes e a mão pegadora, revelava ela.

... vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope, vou atender aos meus apelos, antes que o dia nos sufoque... 

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Aos poucos, a noite ia chegando no bairro. Em cada casa, pais, mães, filhos e avós iam e vinha, entrando pelos becos, voltando da padaria. Como acontecia há muitos anos, com os pais dos pais, e os avós dos netos. Na TV, passava a novela das seis, com a eterna história impossível de uma paixão ardente.

Das Graças foi à geladeirinha do salão e pegou mais cerveja para todas.

-- E você, Stefaninha? Fala pra gente. O que te faz querer viver, menina?

-- Ah, Das Graças, sei de mais nada não... respondeu a moça. Tenho passado por muitas dificuldades, com falta de dinheiro, de sonho na vida. Não sei como... não tenho em que acreditar...

A voz do Roberto entrava por todos os lados.

... toda pedra no caminho, você deve retirar, numa flor que tem espinhos, você pode se arranhar... 

-- Pois outro dia a gente tava sozinho em casa, virei pra ele e lasquei um beijo e uma declaração de amor no cangote dele...

... você foi o maior dos meus sonhos, você é a saudade que eu gosto de ter... 

-- E eu ia falando e ele ia me apertando a bunda... mas parecia... era uma coisa estranha, só eu falando...

... vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope... 

-- Engraçado, ele parecia que não me via, só sentia meus peitos, forçava minhas pernas... falta aquele... algo mais, sei lá, tipo...não sei dizer...

... e na grandeza desse instante, o amor cavalga sem saber... 

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As meninas foram tomando cerveja, aproveitando o tira-gosto e ficando cada vez mais à vontade naquele salão que conheciam tanto. Elas iam ficando mais soltas, como poucas vezes tinham ficado em casa ou no trabalho. Compartilhavam uma sensação boa e inédita de cumplicidade.

-- Pois eu não... eu não sei se quero...

... estrelas mudam de lugar, chegam mais perto só pra ver... 

Ingride já estava enrolando a língua, mas queria muito conversar com as amigas.

-- Sabe, gente, às vezes eu falo para ele. Eu sinto ele tão perto de mim, e sei, sei muito bem que vou continuar a amá-lo...

... por toda a minha vida... 

Karina foi ao banheiro e voltou falando do tempo que foi mãe solteira e que tanto queria alguém do seu lado, um companheiro de verdade... ela sempre pensou que iria achar o seu “carinha”... Sem querer, estava começando a chorar, meio de tristeza, meio de alegria pelas amigas.

... tanto tempo longe de você, quero ao menos lhe falar, a distância não vai impedir, meu amor, de lhe encontrar... 

Das Graças também estava com o nó na garganta. Não queria falar, mas as histórias das meninas tinham tudo a ver com a dela. Mesmo tendo mais dinheiro e “vencendo na vida” com o salão, sabia que lhe faltava algo. Sua vida parecia boa, mas... só parecia. Todas as amigas falam que ela era bem casada, mas só ela sabia de tudo e de verdade. Mas, bem no fundo, não queria mesmo era ficar sozinha.

... quem espera que a vida, seja feita de ilusão, pode até ficar maluco, ou morrer na solidão... 

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As meninas já estavam todas meio que rindo e meio que chorando. Sentiam-se alegres no choro, como se tudo aquilo fizesse muito bem. Era ruim, mas era bom. Elas revelavam seus segredos com a intimidade que a vida permite só às mulheres que sofrem e sabem o tanto que sofrem. Estavam se abraçando, entre cadeiras, bacias de água, vidros multicoloridos de esmaltes e secadores elétricos. Tudo parecia sem vida, diante da vida que insistia em passar feito caleidoscópio.

Por instantes, ficavam em silêncio. Todas pensavam na pergunta de Das Graças. Não tinham certeza sobre as respostas; só sabiam da força da pergunta, que lhes rasgava o coração:

-- O que te faz querer viver?

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Lá fora, no bar, só havia homens. Eles se divertiam a valer, às gargalhadas, se abraçando feito amantes à moda antiga, daqueles que ainda mandam flores. Não se preocupavam com a vida e nem ouviam a voz do Roberto, que insistia...

... é preciso ter cuidado, pra mais tarde não sofrer... 

No salão, uma das garotas subiu descalça na poltrona, com as unhas dos pés bem pintadas de vermelho. Abriu os braços e gritou:

-- E eeeeentão, garotas...? Querem saber??? Quer saber, Des Graças... Eu, euzinha, não me importo, se nesse instante, sou dominada ou se domino....!!! eu aaaamo vocês, de coração!!!

Era como se Roberto cantasse só para elas.

... se o bem e o mal existem, você pode escolher... 

Ela insistiu:

-- E eeeentão, garotas...? ... é preciso saber viver!

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Das Graças custou a fazer a chave rodar na fechadura, mas trancou bem o salão, deixando o reality show para trás, bem fechado lá dentro. Passava da hora de voltarem para o lar. Ela tinha certeza que não podiam levar nem um pouquinho daquilo tudo para casa.

Afinal, os maridos voltaram, como voltariam sempre, das pescarias, dos lava-jatos e dos estádios de futebol; acordaram das bebedeiras, com aquela vontade de transar.

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As quatro mulheres foram caminhando juntas pela rua afora. Logo iam chegar em casa, como chegariam sempre. Nem ouviam mais a voz do Roberto, que parecia já saber de tudo:

... eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo, minhas malas coloquei no chão, eu voltei...

domingo, 6 de setembro de 2015

Gildara e o churrasco na laje



Gildara estava vivendo seus dias de quase fama desde que virara personagem de blog. Ela chegou a comentar com as colegas que estava se tornando “a mais visível das invisíveis” no shopping onde trabalhava. Muitos prestavam atenção em seu crachá, para confirmar o nome. Ficou sabendo até de uma leitora que sugeriu um emprego mais bem pago para ela, diante de sua habilidade com cálculos.

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(Se você não conhece a história de Gildara, clique aí ao lado, no link “A invisível que calculava”, antes de continuar essa leitura)
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E Gildara nem estava imaginando voltar ao blog, mas não teve jeito. Na terça-feira, ela viu uma notícia no jornal que a deixou assustada. E com a cabeça a mil por hora, viciada que estava em fazer contas. Segundo uma revista, chamada Forbes Brasil, o homem mais rico do país viu sua fortuna passar de R$ 49,8 bilhões para R$ 83,7 bilhões entre 2014 e 2015. Isso representa um ganho de R$ 92,7 milhões por dia, ou R$ 3,86 milhões por hora, de acordo com a reportagem.

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No último domingo, Gildara chamara os quatro filhos para conversar. Tinha boas notícias. Ela havia conseguido emprego no shopping para a irmã, que estava vindo do interior para morar com eles. Gildara fora promovida a encarregada, e a irmã ficaria com sua vaga. A meninada ouvia a história com sorrisos nos rostos. Desde que o pai sumiu, a vida estava muito difícil. Agora, dizia a mãe, o dinheiro ia continuar apertado, mas ia mais que dobrar, incluindo o salário da irmã.

-- “Será que a gente vai poder fazer aquela viagem pro Rio de Janeiro, para ver os fogos na praia?”, indagou a filhinha menor, com brilho nos olhos.

-- “Vamos com calma, gente! Ainda não sei”, alertou Gildara. “Mas, com certeza, vou poder comprar uns bons livros para vocês, que estão na idade de gostar de ler”.

Sem saber se o dinheiro ia ser muito, o filho mais velho, que já estava namorando, deu seu palpite:

-- “Mãe, a gente pode comemorar fazendo um churrasco na laje, com cerveja e tudo, chamando todo mundo!”

-- “Olha, pessoal, eu quero muito fazer tudo isso com vocês, mas a gente precisa ir fazendo as conta na ponta do lápis. Lembrem o que já combinamos: mesmo com toda a dificuldade, a gente vai tentar de tudo para ter uma casa só nossa. Todinha paga, sem aluguel”.

**

Gildara saiu cedo para o trabalho na segunda-feira. Estava tão feliz que se deu o direito de passar uma leve maquiagem. Queria ficar bonita. No ônibus lotado, foi pensando na conversa com os filhos. Era a primeira vez, em muito tempo, que sentia uma coisa boa no peito – e sabia o que era. Uma sensação maravilhosa de... uma coisa do tipo... “estar vencendo na vida”. Mesmo sozinha com os filhos, nunca perdeu a esperança de dar conta de tudo.

Com a bolsa a tiracolo, ela apertou as duas mãos na barra de segurar no ônibus e falou para si mesma, em meio a tanta gente que lutava duro como ela: eu vou conseguir. Eu mereço conseguir. Vamos ter mais um dinheiro, e quero tudo para meus filhos. Livros, viagem, churrasco e tudo o mais. E vamos conseguir entrar no programa do governo para ter nossa casa.

Carros e caminhões passavam apressados pela janela do ônibus, mas Gildara não prestava atenção em nada. Seu coração batia forte e parecia crescer no aperto do busão. Na sua frente, só via os rostinhos sorridente de esperança dos seus filhotes.

**

Gildara vinha se acostumando a ler jornal. Aproveitava a hora do almoço para olhar as notícias. Foi quando viu a história do quanto ganhou, em um ano, o homem mais rico do Brasil. Um pensamento lhe causou um sorriso: “Nós dois estamos melhorando de vida. Apesar da crise...”

Aquilo a levou a outra lembrança. Não sabia quem escrevia os jornais e nem como se faziam as reportagens. Mas achava estranho como um tanto de notícias, de uns tempos para cá, começavam assim e depois mostrava outra coisa: Apesar da crise... “Apesar da crise... tem muito mais gente viajando de avião... tem mais escolas e universidades para os jovens pobres... tem mais vacina de graça nos postos de saúde... tem melhores condições de trabalho para as domésticas... tem havido queda na mortalidade infantil... caraca, tem até muito mais médico de graça pelo Brasil no interior do país afora! Quem imaginava que tudo isso ia acontecer um dia?

Ela deixou de lado esse pensamento que a intrigava e prestou atenção na notícia do dia:

“Puta que pariu!”, exclamou, diante do jornal. “O cara tá ganhando quase quatro milhões por hora. Todas as horas, todos os dias. Todos os meses, sem pular nenhum!” Gildara viu que precisaria de uma calculadora. Ia aproveitar os intervalos de lanche para fazer suas contas.

Ela não fazia ideia de quem era “o cara”, mas sentia certa proximidade com ele. É que os dois estavam passando por aquele “algo” em comum – o “apesar da crise”... ainda mais agora, que o supervisor confirmou sua promoção e o emprego da irmã a partir da semana que vem.

**

E aquele monte de números ia enchendo o painel da calculadora. Uns chegavam a nem caber no visor... 3.860.000 dividido por 140.000; depois por 50; e então por 40; e também por 3.000...
Por um instante, Gildara se perguntou se “o cara” tinhas filhos. Se tivesse, eles eram também uns sortudos e deveriam estar com os olhinhos brilhando, assim como os dos seus.

**

De repente, desligou a calculadora. Estava estarrecida.


Com o dinheiro que “o cara” ganha em apenas uma hora, Gildara descobriu que poderia, sim, fazer um churrasco na laje, mas talvez não iria caber tudo mundo. Imaginou gastar R$ 50 por pessoa. Daria para convidar... 77 mil e 200 pessoas...

Com uma hora do lucro do “cara”, ela, com certeza, iria ver os filhos maravilhados com os fogos da cidade maravilhosa. Mas talvez até se cansassem do programa. Com um pacote de R$ 3 mil, incluindo passagem de avião e hospedagem para os cinco, ela e os filhos poderiam passar 1.286 noites de réveillon em Copacabana...

Ela iria, com certeza, comprar livros para os filhos. Mas, mesmo incluindo toda a meninada da vizinhança no “pacote”, ia sobrar muito livro. Pelas contas, com uma hora da grana do “cara”, seria possível dar um livro novo, de R$ 40 cada, para 96 mil crianças cidade afora...

Ela parecia não acreditar em tudo aquilo.

**

Uns tempos atrás, logo quando começou a comprar jornal todos os dias, Gildara viu uma daquelas notícias que não conseguia entender. Punha a culpa em si mesma. “Afinal, eu nunca estudei...”. Numa mesma edição, mas em páginas diferentes, o jornal dizia que o Brasil já era a sétima maior potência econômica do mundo. E que o mesmo Brasil, ao mesmo tempo, estava entre os 20 países com a pior distribuição de renda do mundo. “Por que será que os jornais não juntam essas notícias e explicam isso pra gente?”, indagava.

**

Gildara voltou correndo para o trabalho. Tinha muita mesa para limpar na área de alimentação do shopping. Mas já se via sem aquele avental preto que transforma gente em espécie invisível. Ia usar o terninho de encarregada. Mas, antes de encarar o rodo e o pano, terminou a última conta. A que mais queria fazer.

Com um dia de “trabalho” do “cara”, daria para comprar... 661 apartamentos. Isso dava 19.851 em apenas um mês. “Dezenove mil... oitocentos... e cinquenta... e um...”, foi falando devagar, para tentar imaginar o que significava aquilo. E conseguiu: eram quase 20 mil casas próprias, para abrigar 100 mil pessoas,com famílias do tamanho da sua... Ou seja, uma cidade inteira! Em trinta dias de lucro...

Mesmo acostumada a não se assustar facilmente, ela não acreditava no que estava descobrindo, “apesar de” os grandes jornais preferirem não dar aquelas notícias. Mas ela até imaginou a manchete:


Lucro de 30 dias do homem mais rico
do Brasil daria para comprar casa
própria para famílias de 20 mil gildaras


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P.S do blogueiro, que roubou a calculadora da Gildara: se você “gastou” três minutos lendo essa história, saiba que fez um péssimo negócio. O “cara” certamente não leu, mas acaba de ganhar R$ 193 mil enquanto você lia...


domingo, 30 de agosto de 2015

Pois é, Clóvis...


Marildes chegou cedo à praça da Estação para mais um dia de trabalho duro, lavando os carros já combinados para aquela quarta- feira. Clóvis continuava sumido, e ela estava achando aquilo estranho. Desde os tempos em que estavam juntos, ele nunca deixou de voltar para casa, ainda que muito tarde.

É verdade que abusaram da cachaça na noite de anteontem, ainda na praça. Tomaram mais de litro e ele ficou meio loucão, como nunca ela havia visto. Ele foi ao banheiro da estação e não voltou mais. Depois de procurar por todo canto, Marildes foi sozinha para o barraco onde moravam, não muito longe, na beira do metrô. Caminhou devagar, pois ainda sentia uma dor forte nas costas.

Naquela manhã, estava tirando os tapetes de um carro, quando chegou o cara de cara estranha, falando que era detetive. Marildes limpou as mãos no pano sujo, olhando para ele sem olhar nos olhos. O policial queria saber se ela conhecia um homem alto, de bigode, que costumava ser visto por ali e usava blusão vermelho e encardido, com zíper no meio.

Ela logo viu o Clóvis dentro do blusão e disse, sem entender nada:

-- Se for o Clóvis, a gente tá vivendo junto. Deve ter uns seis mês.

-- Será que você pode vir comigo? Preciso de alguém que possa... saber quem ele é.

-- Mas o Clóvis tá sumido desde segunda, não sei por onde anda. Cê quer que eu vô onde?

O detetive da Civil preferiu não explicar muito. No caminho, ela perguntou se iam para algum hospital.

-- Não, a gente está indo em outro lugar; chama IML.

Marildes continuava sem entender, mas queria mesmo encontrar Clóvis. A viatura de polícia fez a curva à esquerda, saiu da avenida grande que ela não conhecia e pegou uma subida forte.

**
No dia em que ela chegou na rodoviária, vindo dos lados de Montes Claros, não sabia para onde ir. Foi andando, com as sacolas de roupa, até achar a estação de trem, onde homens e mulheres lavavam carros.

Por algum motivo, achou que devia ficar por ali. Tudo na cidade corria muito, e ela estava com medo de ficar sozinha no meio da confusão.

Na hora do almoço, já estava de conversa com o pessoal. Muitos olhavam seu corpo jovem de cima a baixo. Marildes era bonita, ainda que maltratada pela vida dura da roça, onde trabalhava a mando do padrasto, de domingo a domingo. Desde que a mãe levou ele para casa, as duas eram muito maltratadas.

Para piorar, nos últimos tempos, começou a querer dormir com ela, roçando aquela barriga nojenta em suas costas à noite. Custou a contar aquilo para a mãe. E tomou um susto quando sua mãe disse, com a voz baixa, que era melhor ela aceitar. Ela não conseguiu evitar a pergunta:

-- Mas, por que, mãe?

Com a mente calejada, a mãe explicou:

-- Sabe por que, milha filha? Porque a vida é assim.

Na noite seguinte, Marildes foi embora sem falar palavra, com um nó na garganta pela mãe que deixava para ser usada sozinha.

**
A caminhonete da polícia freou de repente, abrindo as portas. Tudo era muito diferente para ela. Marildes continuava sem saber onde estava. Passou por duas salas, quase sufocada por um cheiro azedo no ar. Ela esfregava uma mão na outra, quando, de repente, sem nenhuma explicação, surgiu, na frente dela, uma mesa de alumínio com um corpo coberto por um lençol. 

Alguém puxou o pano branco todo, e ela sentiu um tranco forte no peito e uma estremecida nas costas que ainda doíam. Já tinha visto ele nu, mas não daquele jeito, com gente tão perto e uma costura grosseira que ia do peito à barriga.

**
Naquele momento, alguma coisa começou a acontecer na cabeça de Marildes. Ela não sabia o que era, mas sentiu uma força por dentro. Mesmo naquele lugar tão estranho, teve a sensação de algo bom, diferente do medo de ficar sozinha.

Ela olhou para o rosto de Clóvis e se lembrou dele sorrindo para ela na estação, no dia em ela chegou por lá. Foi o primeiro a se aproximar e conversar, com um sorriso amigo. Ele mostrou toda a estação para ela. Mais tarde, disse que ela podia ajudá-lo a lavar os carros. Não era difícil aprender.

No final do dia, Clóvis falou a Marildes que, se ela quisesse, poderia passar a noite no barraco dele, sem problemas. O sofá era pequeno, mas dava para dormir. Já em casa, ele emprestou uma tolha de banho e não ficou tentando olhar pela fresta da porta do banheiro, que não fechava bem.

Depois, tudo foi muito rápido. Ainda que, ao mesmo tempo, sem pressa ou afoiteza. Duas noites depois, o sofá ficou vazio à noite. E ela não cabia em si pensando como era bom poder dormir com o homem com quem ela queria dormir.

**
Os dias foram passando entre a praça da Estação e carros lavados. No início, ela não queria tomar cachaça, mas aos poucos foi aceitando. Ele chegava a empurrar o copo para ela, insistindo e falando alto, de um jeito que ela nunca tinha ouvido. A cada dia, tudo foi piorando. Muito.

**
Ao lado do detetive e um ajudante, Marildes olhou firme para aquele corpo nu. Estava pensativa, como nunca estivera, desde quando saiu de casa. O policial, com uma ficha na mão, perguntou se ela reconhecia o corpo e qual era o nome e a idade dele.

Num ato inesperado, Marildes indagou:

-- Posso falar com ele...?

O policial olhou para o ajudante, que olhou para ele. Tentaram explicar alguma coisa, mas Marildes estava decidida e insistiu.

O detetive achou que seria mais rápido deixar como estava. Fez que sim com a cabeça e os dois homens se afastaram, num sinal raro de respeito por ali. 

Ela chegou bem perto do corpo, o primeiro que ela conhecera. Sem se encostar nele, começou a falar, sem pressa.

-- Pois é, Clóvis, queria só te perguntar uma coisa, cê vai responder só se quiser, eu cheguei do interior e a gente ficou junto, e era bom, cê era um cara legal comigo, e muito carinhoso, no início era tão bom, cê não faz ideia do quanto era bom, pois eu me sentia alguém, pela primeira vez na vida... eu nem precisava falar isso com você, pois achava que sentia o mesmo... Por que, Clóvis?

Em volta dela, um profundo silêncio era sustentado ao fundo pelo ronco dos motores das geladeiras imensas, cheias de corpos com os quais não adiantava falar mais nada.

-- Pois é, Clóvis, de repente cê começa a beber muito, a falar alto comigo, a ficar sem paciência por nada. Lembra o dia que deixei o arroz queimar um pouquinho? E então, Clóvis, cê foi indo me bater, e batia cada vez mais forte... não sei se você agora ainda sabe, Clóvis, mas os socos nas costas  eram os que mais doíam.

Clóvis insistia em continuar em silêncio, desnudo, com os olhos um pouco abertos, perdido em um ponto qualquer do teto branco e carcomido.

-- Mas soco nas costas, Clóvis, só não era pior que tapas no rosto. Porque, Clóvis, tapa no rosto dói mais é por dentro. Cê não imagina o quanto...

**
O detetive e o ajudante foram chegando perto, como fazem os guardas de prisão, sinalizando o fim da visita. Ela percebeu que a conversa tinha de terminar. Então, perguntou a ele, pela última vez:

-- Por que, Clóvis...?

Enquanto esperava a resposta que nunca ouviria, a última frase que escutou da mãe retumbou em seus ouvidos:

-- Sabe por que, milha filha? Porque a vida é assim.

Marildes foi se afastando aos poucos daquele corpo estranho, com a sensação de alívio que começou a sentir depois que chegou ali.

O detetive deu por encerrada a sessão e perguntou de novo, com a prancheta e a caneta na mão, com pressa de completar a ficha:

-- Você pode dizer o nome completo e a idade aproximada dele?

Marildes nunca tinha escutado palavras como dignidade e empoderamento, mas começava a descobrir, como mulher, o sentido delas. Era dali que vinha a sensação boa que começou a sentir por dentro, quando entrou naquele lugar.

Com a voz firme, doída, mas decidida, ela respondeu ao detetive, agora olhando nos olhos dele, e arrancando das costas a angústia que causava tanta dor:

-- Conheço ele não. Não sei quem é. Nem mesmo o primeiro nome.

Marildes virou de costas para a mesa de alumínio, deixando para trás o corpo indigente e sem força nos braços covardes. Para compensar tamanha violência em vida, negou a ele o direito a alguma dignidade na morte.


Ela nunca havia entrado antes naquele lugar horroroso, tão parecido com o seu passado. Mas tinha a certeza de que, agora, sabia qual era a porta da saída.

domingo, 23 de agosto de 2015

O barbudo que chora

Jennifer tinha 3 anos, os olhinhos finos e um meio sorriso nos lábios. Cabelos encaracolados e um pouco de remela nos olhos; Marcosaurélio, 5 anos, era mais desconfiado e queria se aproximar mais dele, apesar de tímido. Foi chegando pertinho aos poucos; Kellen, de apenas 2 anos, tinha os bracinhos muito magros e a pele marrom. Era sapeca e foi logo passando as duas mãozinhas no rosto dele, sentindo o pinicar da barba; Uiliam era o mais cara fechada. Tinha 4 anos e não queria conversar. Mas não se afastou dos outros, ficando também em volta dele.

***
Ele atravessou a cidade para fazer a reportagem. Era uma daquelas pautas de que tanto gostava – retratar a realidade da vida das pessoas esquecidas no meio da confusão da existência.
Quando chegava numa rua em que, de um lado, havia casas e, do outro, mato, sabia que estava realmente na periferia de tudo.  Foi o que aconteceu quando avistou seu destino – a creche de muro amarelo e portão vermelho.
Sua missão era até simples. O jornal iria fazer um caderno especial sobre as creches da prefeitura que passavam por dificuldades, com a eterna falta de verba para manter os filhos de pais que não tinham com quem deixá-los.

***
Uiliam foi, aos poucos, se aproximando dele, de olho no caderno de anotações e nas frases ali rabiscadas; Kellen já estava sentada na perna dele, mexendo na máquina fotográfica e fazendo careta para futuras fotos; Marcosaurélio perdeu o medo e passava seu carrinho azul pela barriga dele, com se fosse uma estrada montanhosa; Jennifer ia chegando mais perto, devagarzinho.

***
Ele foi recebido pela diretora da creche, que abriu todas as portas, consciente da força da imprensa. Ela falou das dificuldades e mandou recados a quem pudesse ouvir.
Foram então para o pátio, onde as crianças brincavam descendo no escorregador e afundando na areia. Ele foi conversando com uns e outros, mas a meninada queria mesmo era sair nas fotos.

***
Marcosaurélio tomou coragem e pulou no colo dele, seguido por Kellen. Uiliam foi atrás e Jennifer também, para sua surpresa.

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Depois de meia hora de brincadeira com as crianças no pátio, a diretora se aproximou meio sem jeito e disse que queria lhe pedir uma coisa: “Se não quiser, não tem problema. Pode dizer que não”.

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Um tanto perdido no meio da criançada, ele nem notou quando os dois meninos e as duas meninas foram se aproximando aos poucos, meio com vergonha, levados pela diretora.

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De repente, a vida parecia começar a passar em câmara lenta. Jennifer, Marcosaurélio, Uiliam e Kellen olhavam para ele de pertinho. Um a um, iam passando as mãos em seu rosto, até chegarem à barba grossa e espessa. Faziam uma mistura de carinho e exploração.

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O relógio também parecia passar em câmara lenta no meio daquela tarde. O pátio foi sumindo em volta, deixando a casa amarela da periferia cada vez mais longe, em direção a um futuro que jamais existiria...

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Marcosaurélio, Jennifer, Uiliam e Kellen não cabiam de alegria ao lado dele. Achavam que não ia dar tempo de ir em tudo. Do carrossel à roda gigante; do carrinho bate-bate ao minhocão. Será que a gente pode voltar no domingo que vem?

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Depois do banho e do jantar, era hora de preparar o lanche para a aula do dia seguinte. Será que a gente pode ir lá naquele parquinho da escola na hora do recreio, onde um monte de meninos fica brincando?

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No final do ano, iriam sair para ver as luzes de Natal, naquele bairro de árvores grandes. Quantas luzinhas enfeitavam as ruas e deixavam tudo tão iluminado. Será que podemos também enfeitar a casa da gente?

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A diretora olhou o relógio, controlando a hora de levar as crianças de volta para as salas. Estava também preocupada com o tempo. Se chovesse, ia ter de colocar todos no salão, onde não havia goteiras.

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Jennifer soltou uma gargalhada deliciosa e gritou, pulando na cama: Ah, eu sei que o coelhinho da Páscoa é você!!! Ele não existe!!

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Marcosaurélio estava de olhos bem abertos, encantado, vendo o livro grande e colorido do museu com a imagem da Mona Lisa na capa, com um meio sorriso só para ele.

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Uiliam olhou no espelho e ajeitou a camisa de futebol, que parecia um pouco grande. Estava com medo, mas feliz de ter sido chamado para o time principal que iria jogar no domingo.

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Kellen não cabia em si de alegria, com a roupa de balé e aquelas sapatilhas que apertavam tanto os pés. Queria chamar a mãe para ir ver a apresentação daquela tarde.

**
Por fim, a diretora levantou-se e tocou o pequeno sino, anunciando o fim do recreio e do lanche. O relógio começou de novo a andar depressa, destruindo a câmera lenta que levava aos sonhos. Daqui a pouco, as mães, muitas com pressa para preparar o jantar e dormir cedo, começariam a chegar.

**
As mãozinhas de Marcosaurélio, Jennifer, Uiliam e Kellen foram se afastando aos poucos da barba dele, de volta à realidade.

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A diretora e ele estavam sozinhos no pátio. Ela se aproximou meio sem jeito, e disse que queria lhe pedir uma coisa: “Se não quiser, não tem problema. Pode dizer que não”.
Diante do silêncio conivente dele, ela falou: “É que tem umas crianças aqui querendo saber se podem pegar em sua barba. Eu queria perguntar se você deixa”.
Sem entender bem tudo aquilo, ele disse, da forma mais simples:
-- É claro que podem.
Ele ouviu, então, uma das frases mais marcantes de sua carreira, que ficaria retumbando em sua mente pelo resto da vida:
-- Elas pediram para passar as mãos na sua barba porque nunca tiveram um pai...

**
Ele fechou o portão vermelho, deixando para trás a creche de muro amarelo que ficava no fim do mundo e entrou no carro.
Ligou o motor, deu a partida, virou a esquina e parou. Segurou com força o volante com as duas mãos e, então, chorou.
Chorou muito, como se fosse chorar para sempre, sem conseguir evitar que a realidade da vida engolisse seu coração de repórter.



sábado, 15 de agosto de 2015

A invisível que calculava

Gildara tinha quatros filhos. De dois maridos. Na verdade, de um. O outro “não prestava, nunca ajudou em nada e acabou indo embora”.  Desde cedo, ajudava a mãe em casa e tinha noção de dinheiro – ou da falta dele, fazendo contas o tempo todo. Tira ali, espera sair o salário aqui, pega emprestado. E as coisas iam se resolvendo.
Na época do Sarney, até que era melhor. Tinha o gatilho, e o salário acabava subindo sempre. Veio o Cruzado, e a inflação sumiu. Pelo menos por um tempo.
Depois, voltou à desgraça de sempre. Mas ela sempre gostou de fazer contas e de ter noção do que o seu dinheiro podia comprar. Com o Real, anos depois, a situação voltou a melhorar. O dinheiro era curto, mas dava para planejar as coisas.
Quando se casou com Honório, largou da mãe e foi virar mãe ela própria. Ter suas contas e dar seus pulos sozinha. Honório trabalhava na Fiat, e até que o dinheiro era o bastante. Mas ele deu pra sair com outras mulheres. E quando Gildara falou que daquele jeito não dava, aí é que não deu mesmo. Honório sumiu com alguma vagabunda. Ou sozinho.
Agora ela estava se virando melhor com o emprego no shopping. Trabalhava na praça de alimentação, limpando mesas, recolhendo copos vazios e bandejas usadas.
Tinha umas amigas de trabalho. Entre uma mesa e outra, dava para conversar um pouco e falar da vida. Mas acabava mesmo era pensando muito, circulando entre as mesas com famílias, jovens, crianças, namorados e senhoras.
Quase todos com sacolas chiques das lojas. Ao limpar as mesas, sempre ouvia as conversas. Às vezes, conversas que não deveriam ser conversadas na frente de alguém de fora, ou de um estranho.
Mas, como costumava dizer a Marildes, que também trabalhava lá:

“Tenho a sensação de que a gente é invisível. Ninguém vê nós. Ou parece que não vê. É como se nós não existisse de verdade. Eles só vê mesa suja ou mesa limpa”.
Gildara entendia bem aquela coisa de parecer invisível, apesar de ser gordinha e bunduda.
No dia a dia, ela sentia falta de ficar fazendo contas de dinheiro. De ver os preços das coisas e calcular o que dava – ou não – para comprar. Como fazia na casa da mãe e, depois, na sua também.

***

Um dia, viu uma mulher bacana ganhando um presente de um homem que devia ser o marido, ali na mesa. Ao abrir a sacola, a mulher ganhou brilho nos olhos e abriu um sorriso grande, de um tamanho que Gildara nunca abrira. Era uma bolsa vermelha e brilhante.
Invisível, ela ficou perto e ouviu a conversa. Era presente de aniversário de cinco anos de casamento. Pela embalagem, ela sabia onde era a loja, no andar de cima.
Não deu outra. Na hora do café, em vez de ir para a área lá fora, onde as outras fumavam, foi na vitrine da loja. Viu uma bolsa igual, também vermelha e brilhante. Custou para ver o preço, de tão pequena a plaquinha. Custava R$ 2.250,00 à vista.
De volta à praça de alimentação, ficou fazendo contas. O casal já tinha sumido. A bolsa custava três meses do seu trabalho. Ela precisaria ir 66 dias no shopping e trabalhar 528 horas para comprar uma igual. Teria de pegar 264 ônibus lotados. Duzentos e sessenta e quatro...
Ela já tinha feito outras contas e sabia que limpava umas 200 mesas por dia, entre as outras tarefas. Colocou a maquininha da cabeça para trabalhar. Sessenta e seis vezes duzentos... dava 13 mil e duzentos...
Puta que pariu... pensou ela, repetindo baixinho e devagar... eu teria de limpar treze mil e duzentas mesas para ter aquela bolsa... se fosse pagar de três vezes, ia chegar numas 20 mil mesas, calculou, já em tom de brincadeira.
Imaginou a mulher bonita do sorriso largo, com a bolsa vermelha e brilhante no ombro, suada, com os pés inchados no sapato de salto, limpando 13 mil e duzentas mesas... em uma delas, estaria o marido olhando fixo e apaixonado para ela, que não era invisível.
***
Na semana seguinte, foi a vez de um microcomputador. Um notebook, ela sabia o nome. O dono dele, um jovem estudante, estava radiante na mesa, ao lado dos colegas, todos de uniforme. Eram uns dez, de olhos cravados na tela, que ia mudando de imagem a cada clique.
No meio daquela turma, pensou Gildara, posso até ficar pelada para limpar a mesa, que vou ficar ainda mais invisível... acho que só os garçons iriam prestar atenção...
O notebook era mesmo bonito. Fininho e prateado. Com aquela marca da maçã na tampa, ficava fácil achar a loja.
Era pertinho, e não precisou esperar a hora do café. Tinha de trocar o saco preto na lixeira grande, ao lado dela.
Na vitrine, os modelos eram muito parecidos. Mas achou o fininho. Gildara não era de se assustar fácil, mas arregalou os olhinhos finos quando viu o preço. Contou de novo os zeros, para ter certeza. Quatorze mil reais. Em dólar era mais barato, tava escrito no quadrinho de preço, mas sabia que ali só vendia mesmo em dinheiro brasileiro.
No resto do dia – entre mesas e cadeiras, Coca-Cola derramada, batata frita no chão, resto de ketchup na bandeja, prato de macarrão abandonado pela metade – ficou fazendo contas.
O tênis do filho mais novo custava cem reais. Não era couro, mas durava seis meses. Catorze mil dividido por 100, o que dava 140. Dividido por dois... 70. O notebook custava 70 anos de tênis para o filho mais novo.
Ela deixou escapar uma gargalhada alta. Não conseguiu segurar. Coisa esquisita, alguém diria na mesa. Uma gargalhada rindo sozinha ali pertinho, saindo da boca de ninguém...
Como o filho tinha doze anos, ela poderia comprar tênis até ele completar 82!!! Ela não, lógico, pois já teria morrido. Será que invisível ocupa lugar debaixo da terra?, se pegou em dúvida...

***

Gildara não comentava com as amigas nada sobre aquelas contas que fazia. Tinha a clara sensação de que seus cálculos não faziam bem a ninguém como ela. E que, do outro lado, nas mesas, as outras pessoas não faziam ideia também dos resultados de suas contas.
Mas aquilo tinha virado um vício, e ela não conseguia parar.
Os chopes daquele senhor solitário até que não assustavam tanto... ele chegava lá pelas oito e só ia embora às dez, depois de ler todo o jornal. Edgar, o garçon da pizzaria (um negro engraçado, que para ela mais parecia ator de filme de cinema), revelou-lhe: a conta dava uns 140 por dia, somando mais dez chopes e uma pizza ou um macarrão.
Quanto será que dá isso, pensou, com a mente inquieta e rascunhenta... 800 do salário dividido por 30 dias, dá quase 27 reais por dia. 140 dividido por 27...
Caraca!, disse ela, de novo em voz alta. Esse cara bebe, em duas horas, uma semana do trabalho. Em 24 minutos, ele saboreia um dia inteiro do meu suor! Quantas mesas limpas isso deve dar...?

***

Na segunda feira, o shopping abriu às dez. Assim como na terça, na quarta, no sábado. Todos os dias do mês, todos os meses do ano. O empreendimento era um sucesso. Às vésperas de completar 10 anos, os empreendedores resolveram comemorar, com uma nova campanha de venda. E anunciaram:
“Não percam a promoção: cada compra acima de 25 dias de trabalho de Gildara (sem incluir hora extra, como previa o regulamento), daria direito a um cupom. E cada cupom iria concorrer ao sorteio de uma Mercedes conversível, no valor de 10 anos (isso mesmo, 120 meses!!!) de mensalidade da escola da filha mais nova de Gildara, caso a menina fosse colocada em um colégio particular”.
Os empreendedores não tinham dúvidas de que a promoção seria um sucesso. Afinal, naquela época, nada menos que 30 mil pessoas frequentavam o shopping por dia. Esse dado não era estimado, mas comprovado pelos sensores de LED instalados nas entradas e nas escadas rolantes que vinham dos estacionamentos.
Mas eles não sabiam que aquele número era um pouco maior, apesar de a diferença não fazer diferença para eles e para ninguém como eles.
Afinal, mesmo com toda a moderna tecnologia aplicada, os sensores também não conseguiam captar a passagem das gildaras pelos raios de infravermelho.