Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

domingo, 4 de outubro de 2015

Só por uma vez...

Dayane foi acordada, antes das sete, por uma ponta de sol que trespassava a janela vermelha, de madeira carcomida, do quarto que há um mês ocupava no hotel. Sentia um gosto amargo na boca, de resto de Bacardi ainda da noite anterior. Seu rosto denunciava sua juventude sofrida.

Desceu para tomar café com leite e pão com manteiga no bar da esquina da Avenida Santos Dumont, que funcionava 24 horas e tinha suas regras, como a do cartaz mal escrito na parede: “Proibido vender bebida alcóolica antes das nove”.

Ela ficou olhando para o nada enquanto o café esfriava um pouco. Estava com o corpo dolorido do dia anterior. Foram mais de oito homens, só depois das cinco da tarde, quando chegou ao hotel. Passara o dia pesquisando os preços dos cursos de enfermagem em várias faculdades da cidade.

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Rodolfo também foi acordado por uma fresta de luz, que entrava pela cortina da janela do ônibus. Quando despertou de vez, já estava na rodoviária, no centro de BH. Tinha o hálito forte de cigarro de palha e cachaça ruim, que fumara e bebera nas três paradas desde que saíra de Almenara. A barba estava mal feita, os dentes ruins e os cabelos, esbranquiçados.

Apesar da idade, ia procurar emprego na capital, mas não tinha pressa. Passou a noite, entre dormindo e acordado, pensando em procurar alguma mulher “bem torneada” perto da rodoviária.

Depois de descer do ônibus, só com a mochila de mão, foi andando por uma avenida grande, com duas pistas largas só para ônibus. Parou num bar de esquina para tomar café com pão. O dinheiro estava contado, mas tinha de dar para pagar a mulher.

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Muita gente passava apressada diante do bar. Alguns tomavam um café rápido e caminhavam, decididos, para lugar qualquer. Mulheres dos hotéis da região já estavam procurando um cliente qualquer. Camelôs vendiam de tudo por todo lado. O dono do bar não via ninguém, só tomava conta do dinheiro que entrava. Vidas seguiam seus destinos, perdidas na confusão do centro da cidade.

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Rodolfo viu a moça de cabelo negro e vistoso quase ao seu lado, no balcão. Percorreu-lhe o corpo com o olhar viciado de sempre. Ela retribuiu-lhe a atenção, sem disfarçar desejo forçado. Ele lhe mandou um meio sorriso.

Dayane sentiu que o cliente era dela. Ainda era cedo para começar a trabalhar, mas estava juntando dinheiro para tentar a faculdade. Sempre antes de dormir, finalmente a sós, imaginava-se trabalhando de branco à noite, em um hospital de gente bacana.

Sem perder tempo, ela se aproximou dele, no balcão ainda vazio, oferecendo-lhe o sorriso comercial. De leve, roçou o corpo nas pernas daquele homem, que perguntou sem rodeios:

-- Quanto é o programa, mulhé? 

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Atravessaram a rua em direção ao hotel, que ficava ao lado de um cine privê, onde homens e mulheres se misturavam ao longo do dia, todos os dias, num enredo difuso entre realidade e fantasia.

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No começo, Dayane achava muito estranho ser usada por tantos homens em um mesmo dia. Mas o estranhamento foi virando rotina, assim como tudo o que eles faziam ou pediam que ela fizesse.

No quarto, o homem acendeu um cigarro e foi tirando a roupa, enquanto ela fazia o mesmo. A intimidade inevitável surgia do nada. Ele a tomou pela cintura, sentindo sua pele lisa em seu corpo rude e castigado pelo sol. Passou por ela suas mãos pouco afeitas a carinhos. Estava afoito e disse, com a voz rouca de nicotina:

-- Quero te sentir nos meus braços, mulhé. Mesmo que seja só por uma vez. 

Havia algo comum entre eles, além do cheiro de resto de álcool. Horas atrás, poderiam parecer velhos conhecidos, perdidos numa noite suja, cada um em seu caminho.

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Ela não tinha uma casa e muito menos um lar. Na única cama do único quarto de sua vida, deixou aquele homem vindo do nada saciar-se enquanto quis. Depois de tudo, ele acendeu outro cigarro, deitado ao lado dela.

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Foi quando, de repente, ela viu.

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E sua alma estremeceu. Ao olhar para o pé direito daquele homem, viu que ele não tinha o dedão. No lugar, apenas uma cicatriz grosseira e suja. Rodolfo percebeu o que ela olhava e disse, distraído:

-- Não se assuste com o meu pé. É estranho, mas já me acostumei. Perdi o dedão com uma machadada errada que dei na roça. Faz muito tempo, sabe... 

Dayane esquecera o corpo doído e foi se assustando por dentro e por fora. Queria cobrir a nudez e não olhar para aquele homem que continuava falando:

-- Não deu para salvar o dedo. Na hora, estava só eu e minha filhinha de quatro anos, numa roça pra lá de Almenara. Coitada, ela não tinha como buscar socorro... 

Dayane sentia verdadeiro pavor dentro daquele quarto cada vez menor e mais apertado. Ainda teve força para perguntar:

-- E... onde está... sua filha...?? 

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Fora do hotel, o sol esquentava o asfalto e as calçadas, por onde passava tanta gente despossuída de destino.

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A pergunta de Dayane fez Rodolfo olhar fundo para o branco do teto mal pintado. Ele tragou forte o cigarro e falou:

-- Num sei de minha filhinha, não. Ela saiu de casa e sumiu no mundo com a mãe, há muito tempo. 

Dayane tentava segurar os cabelos com as mãos, que tremiam, descontroladas. Foi saindo do quarto devagar para não ser vista. Mas ainda ouviu aquele homem já não estranho dizendo:

-- Num sei mesmo o paradeiro da minha filha... mas, vou te falar, mulhé... daria tudo para poder abraçá-la de novo. Nem que fosse só por uma vez! 

***

Já no corredor, indo para lugar algum, Dayane passou pela vizinha de quarto, que lhe perguntou brincando:

-- Cliente novo no pedaço!? 

-- Sim... quer dizer... não!, disse Dayane, sem conseguir mais conter as lágrimas, que nunca tinham escorrido naquele maldito hotel.

Mal ouvindo a própria voz, ainda falou, mais para si do que para a outra:

 -- Ele... um dia... 

-- Um dia... ele já foi meu pai.

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