Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

domingo, 6 de setembro de 2015

Gildara e o churrasco na laje



Gildara estava vivendo seus dias de quase fama desde que virara personagem de blog. Ela chegou a comentar com as colegas que estava se tornando “a mais visível das invisíveis” no shopping onde trabalhava. Muitos prestavam atenção em seu crachá, para confirmar o nome. Ficou sabendo até de uma leitora que sugeriu um emprego mais bem pago para ela, diante de sua habilidade com cálculos.

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(Se você não conhece a história de Gildara, clique aí ao lado, no link “A invisível que calculava”, antes de continuar essa leitura)
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E Gildara nem estava imaginando voltar ao blog, mas não teve jeito. Na terça-feira, ela viu uma notícia no jornal que a deixou assustada. E com a cabeça a mil por hora, viciada que estava em fazer contas. Segundo uma revista, chamada Forbes Brasil, o homem mais rico do país viu sua fortuna passar de R$ 49,8 bilhões para R$ 83,7 bilhões entre 2014 e 2015. Isso representa um ganho de R$ 92,7 milhões por dia, ou R$ 3,86 milhões por hora, de acordo com a reportagem.

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No último domingo, Gildara chamara os quatro filhos para conversar. Tinha boas notícias. Ela havia conseguido emprego no shopping para a irmã, que estava vindo do interior para morar com eles. Gildara fora promovida a encarregada, e a irmã ficaria com sua vaga. A meninada ouvia a história com sorrisos nos rostos. Desde que o pai sumiu, a vida estava muito difícil. Agora, dizia a mãe, o dinheiro ia continuar apertado, mas ia mais que dobrar, incluindo o salário da irmã.

-- “Será que a gente vai poder fazer aquela viagem pro Rio de Janeiro, para ver os fogos na praia?”, indagou a filhinha menor, com brilho nos olhos.

-- “Vamos com calma, gente! Ainda não sei”, alertou Gildara. “Mas, com certeza, vou poder comprar uns bons livros para vocês, que estão na idade de gostar de ler”.

Sem saber se o dinheiro ia ser muito, o filho mais velho, que já estava namorando, deu seu palpite:

-- “Mãe, a gente pode comemorar fazendo um churrasco na laje, com cerveja e tudo, chamando todo mundo!”

-- “Olha, pessoal, eu quero muito fazer tudo isso com vocês, mas a gente precisa ir fazendo as conta na ponta do lápis. Lembrem o que já combinamos: mesmo com toda a dificuldade, a gente vai tentar de tudo para ter uma casa só nossa. Todinha paga, sem aluguel”.

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Gildara saiu cedo para o trabalho na segunda-feira. Estava tão feliz que se deu o direito de passar uma leve maquiagem. Queria ficar bonita. No ônibus lotado, foi pensando na conversa com os filhos. Era a primeira vez, em muito tempo, que sentia uma coisa boa no peito – e sabia o que era. Uma sensação maravilhosa de... uma coisa do tipo... “estar vencendo na vida”. Mesmo sozinha com os filhos, nunca perdeu a esperança de dar conta de tudo.

Com a bolsa a tiracolo, ela apertou as duas mãos na barra de segurar no ônibus e falou para si mesma, em meio a tanta gente que lutava duro como ela: eu vou conseguir. Eu mereço conseguir. Vamos ter mais um dinheiro, e quero tudo para meus filhos. Livros, viagem, churrasco e tudo o mais. E vamos conseguir entrar no programa do governo para ter nossa casa.

Carros e caminhões passavam apressados pela janela do ônibus, mas Gildara não prestava atenção em nada. Seu coração batia forte e parecia crescer no aperto do busão. Na sua frente, só via os rostinhos sorridente de esperança dos seus filhotes.

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Gildara vinha se acostumando a ler jornal. Aproveitava a hora do almoço para olhar as notícias. Foi quando viu a história do quanto ganhou, em um ano, o homem mais rico do Brasil. Um pensamento lhe causou um sorriso: “Nós dois estamos melhorando de vida. Apesar da crise...”

Aquilo a levou a outra lembrança. Não sabia quem escrevia os jornais e nem como se faziam as reportagens. Mas achava estranho como um tanto de notícias, de uns tempos para cá, começavam assim e depois mostrava outra coisa: Apesar da crise... “Apesar da crise... tem muito mais gente viajando de avião... tem mais escolas e universidades para os jovens pobres... tem mais vacina de graça nos postos de saúde... tem melhores condições de trabalho para as domésticas... tem havido queda na mortalidade infantil... caraca, tem até muito mais médico de graça pelo Brasil no interior do país afora! Quem imaginava que tudo isso ia acontecer um dia?

Ela deixou de lado esse pensamento que a intrigava e prestou atenção na notícia do dia:

“Puta que pariu!”, exclamou, diante do jornal. “O cara tá ganhando quase quatro milhões por hora. Todas as horas, todos os dias. Todos os meses, sem pular nenhum!” Gildara viu que precisaria de uma calculadora. Ia aproveitar os intervalos de lanche para fazer suas contas.

Ela não fazia ideia de quem era “o cara”, mas sentia certa proximidade com ele. É que os dois estavam passando por aquele “algo” em comum – o “apesar da crise”... ainda mais agora, que o supervisor confirmou sua promoção e o emprego da irmã a partir da semana que vem.

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E aquele monte de números ia enchendo o painel da calculadora. Uns chegavam a nem caber no visor... 3.860.000 dividido por 140.000; depois por 50; e então por 40; e também por 3.000...
Por um instante, Gildara se perguntou se “o cara” tinhas filhos. Se tivesse, eles eram também uns sortudos e deveriam estar com os olhinhos brilhando, assim como os dos seus.

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De repente, desligou a calculadora. Estava estarrecida.


Com o dinheiro que “o cara” ganha em apenas uma hora, Gildara descobriu que poderia, sim, fazer um churrasco na laje, mas talvez não iria caber tudo mundo. Imaginou gastar R$ 50 por pessoa. Daria para convidar... 77 mil e 200 pessoas...

Com uma hora do lucro do “cara”, ela, com certeza, iria ver os filhos maravilhados com os fogos da cidade maravilhosa. Mas talvez até se cansassem do programa. Com um pacote de R$ 3 mil, incluindo passagem de avião e hospedagem para os cinco, ela e os filhos poderiam passar 1.286 noites de réveillon em Copacabana...

Ela iria, com certeza, comprar livros para os filhos. Mas, mesmo incluindo toda a meninada da vizinhança no “pacote”, ia sobrar muito livro. Pelas contas, com uma hora da grana do “cara”, seria possível dar um livro novo, de R$ 40 cada, para 96 mil crianças cidade afora...

Ela parecia não acreditar em tudo aquilo.

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Uns tempos atrás, logo quando começou a comprar jornal todos os dias, Gildara viu uma daquelas notícias que não conseguia entender. Punha a culpa em si mesma. “Afinal, eu nunca estudei...”. Numa mesma edição, mas em páginas diferentes, o jornal dizia que o Brasil já era a sétima maior potência econômica do mundo. E que o mesmo Brasil, ao mesmo tempo, estava entre os 20 países com a pior distribuição de renda do mundo. “Por que será que os jornais não juntam essas notícias e explicam isso pra gente?”, indagava.

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Gildara voltou correndo para o trabalho. Tinha muita mesa para limpar na área de alimentação do shopping. Mas já se via sem aquele avental preto que transforma gente em espécie invisível. Ia usar o terninho de encarregada. Mas, antes de encarar o rodo e o pano, terminou a última conta. A que mais queria fazer.

Com um dia de “trabalho” do “cara”, daria para comprar... 661 apartamentos. Isso dava 19.851 em apenas um mês. “Dezenove mil... oitocentos... e cinquenta... e um...”, foi falando devagar, para tentar imaginar o que significava aquilo. E conseguiu: eram quase 20 mil casas próprias, para abrigar 100 mil pessoas,com famílias do tamanho da sua... Ou seja, uma cidade inteira! Em trinta dias de lucro...

Mesmo acostumada a não se assustar facilmente, ela não acreditava no que estava descobrindo, “apesar de” os grandes jornais preferirem não dar aquelas notícias. Mas ela até imaginou a manchete:


Lucro de 30 dias do homem mais rico
do Brasil daria para comprar casa
própria para famílias de 20 mil gildaras


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P.S do blogueiro, que roubou a calculadora da Gildara: se você “gastou” três minutos lendo essa história, saiba que fez um péssimo negócio. O “cara” certamente não leu, mas acaba de ganhar R$ 193 mil enquanto você lia...


3 comentários:

  1. Clap, clap, clap! Seu texto nos prende, acorrenta e, ao mesmo tempo, nos liberta. Extasiada.

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  2. Clap, clap, clap! Seu texto nos prende, acorrenta e, ao mesmo tempo, nos liberta. Extasiada.

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