Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

sábado, 15 de agosto de 2015

A invisível que calculava

Gildara tinha quatros filhos. De dois maridos. Na verdade, de um. O outro “não prestava, nunca ajudou em nada e acabou indo embora”.  Desde cedo, ajudava a mãe em casa e tinha noção de dinheiro – ou da falta dele, fazendo contas o tempo todo. Tira ali, espera sair o salário aqui, pega emprestado. E as coisas iam se resolvendo.
Na época do Sarney, até que era melhor. Tinha o gatilho, e o salário acabava subindo sempre. Veio o Cruzado, e a inflação sumiu. Pelo menos por um tempo.
Depois, voltou à desgraça de sempre. Mas ela sempre gostou de fazer contas e de ter noção do que o seu dinheiro podia comprar. Com o Real, anos depois, a situação voltou a melhorar. O dinheiro era curto, mas dava para planejar as coisas.
Quando se casou com Honório, largou da mãe e foi virar mãe ela própria. Ter suas contas e dar seus pulos sozinha. Honório trabalhava na Fiat, e até que o dinheiro era o bastante. Mas ele deu pra sair com outras mulheres. E quando Gildara falou que daquele jeito não dava, aí é que não deu mesmo. Honório sumiu com alguma vagabunda. Ou sozinho.
Agora ela estava se virando melhor com o emprego no shopping. Trabalhava na praça de alimentação, limpando mesas, recolhendo copos vazios e bandejas usadas.
Tinha umas amigas de trabalho. Entre uma mesa e outra, dava para conversar um pouco e falar da vida. Mas acabava mesmo era pensando muito, circulando entre as mesas com famílias, jovens, crianças, namorados e senhoras.
Quase todos com sacolas chiques das lojas. Ao limpar as mesas, sempre ouvia as conversas. Às vezes, conversas que não deveriam ser conversadas na frente de alguém de fora, ou de um estranho.
Mas, como costumava dizer a Marildes, que também trabalhava lá:

“Tenho a sensação de que a gente é invisível. Ninguém vê nós. Ou parece que não vê. É como se nós não existisse de verdade. Eles só vê mesa suja ou mesa limpa”.
Gildara entendia bem aquela coisa de parecer invisível, apesar de ser gordinha e bunduda.
No dia a dia, ela sentia falta de ficar fazendo contas de dinheiro. De ver os preços das coisas e calcular o que dava – ou não – para comprar. Como fazia na casa da mãe e, depois, na sua também.

***

Um dia, viu uma mulher bacana ganhando um presente de um homem que devia ser o marido, ali na mesa. Ao abrir a sacola, a mulher ganhou brilho nos olhos e abriu um sorriso grande, de um tamanho que Gildara nunca abrira. Era uma bolsa vermelha e brilhante.
Invisível, ela ficou perto e ouviu a conversa. Era presente de aniversário de cinco anos de casamento. Pela embalagem, ela sabia onde era a loja, no andar de cima.
Não deu outra. Na hora do café, em vez de ir para a área lá fora, onde as outras fumavam, foi na vitrine da loja. Viu uma bolsa igual, também vermelha e brilhante. Custou para ver o preço, de tão pequena a plaquinha. Custava R$ 2.250,00 à vista.
De volta à praça de alimentação, ficou fazendo contas. O casal já tinha sumido. A bolsa custava três meses do seu trabalho. Ela precisaria ir 66 dias no shopping e trabalhar 528 horas para comprar uma igual. Teria de pegar 264 ônibus lotados. Duzentos e sessenta e quatro...
Ela já tinha feito outras contas e sabia que limpava umas 200 mesas por dia, entre as outras tarefas. Colocou a maquininha da cabeça para trabalhar. Sessenta e seis vezes duzentos... dava 13 mil e duzentos...
Puta que pariu... pensou ela, repetindo baixinho e devagar... eu teria de limpar treze mil e duzentas mesas para ter aquela bolsa... se fosse pagar de três vezes, ia chegar numas 20 mil mesas, calculou, já em tom de brincadeira.
Imaginou a mulher bonita do sorriso largo, com a bolsa vermelha e brilhante no ombro, suada, com os pés inchados no sapato de salto, limpando 13 mil e duzentas mesas... em uma delas, estaria o marido olhando fixo e apaixonado para ela, que não era invisível.
***
Na semana seguinte, foi a vez de um microcomputador. Um notebook, ela sabia o nome. O dono dele, um jovem estudante, estava radiante na mesa, ao lado dos colegas, todos de uniforme. Eram uns dez, de olhos cravados na tela, que ia mudando de imagem a cada clique.
No meio daquela turma, pensou Gildara, posso até ficar pelada para limpar a mesa, que vou ficar ainda mais invisível... acho que só os garçons iriam prestar atenção...
O notebook era mesmo bonito. Fininho e prateado. Com aquela marca da maçã na tampa, ficava fácil achar a loja.
Era pertinho, e não precisou esperar a hora do café. Tinha de trocar o saco preto na lixeira grande, ao lado dela.
Na vitrine, os modelos eram muito parecidos. Mas achou o fininho. Gildara não era de se assustar fácil, mas arregalou os olhinhos finos quando viu o preço. Contou de novo os zeros, para ter certeza. Quatorze mil reais. Em dólar era mais barato, tava escrito no quadrinho de preço, mas sabia que ali só vendia mesmo em dinheiro brasileiro.
No resto do dia – entre mesas e cadeiras, Coca-Cola derramada, batata frita no chão, resto de ketchup na bandeja, prato de macarrão abandonado pela metade – ficou fazendo contas.
O tênis do filho mais novo custava cem reais. Não era couro, mas durava seis meses. Catorze mil dividido por 100, o que dava 140. Dividido por dois... 70. O notebook custava 70 anos de tênis para o filho mais novo.
Ela deixou escapar uma gargalhada alta. Não conseguiu segurar. Coisa esquisita, alguém diria na mesa. Uma gargalhada rindo sozinha ali pertinho, saindo da boca de ninguém...
Como o filho tinha doze anos, ela poderia comprar tênis até ele completar 82!!! Ela não, lógico, pois já teria morrido. Será que invisível ocupa lugar debaixo da terra?, se pegou em dúvida...

***

Gildara não comentava com as amigas nada sobre aquelas contas que fazia. Tinha a clara sensação de que seus cálculos não faziam bem a ninguém como ela. E que, do outro lado, nas mesas, as outras pessoas não faziam ideia também dos resultados de suas contas.
Mas aquilo tinha virado um vício, e ela não conseguia parar.
Os chopes daquele senhor solitário até que não assustavam tanto... ele chegava lá pelas oito e só ia embora às dez, depois de ler todo o jornal. Edgar, o garçon da pizzaria (um negro engraçado, que para ela mais parecia ator de filme de cinema), revelou-lhe: a conta dava uns 140 por dia, somando mais dez chopes e uma pizza ou um macarrão.
Quanto será que dá isso, pensou, com a mente inquieta e rascunhenta... 800 do salário dividido por 30 dias, dá quase 27 reais por dia. 140 dividido por 27...
Caraca!, disse ela, de novo em voz alta. Esse cara bebe, em duas horas, uma semana do trabalho. Em 24 minutos, ele saboreia um dia inteiro do meu suor! Quantas mesas limpas isso deve dar...?

***

Na segunda feira, o shopping abriu às dez. Assim como na terça, na quarta, no sábado. Todos os dias do mês, todos os meses do ano. O empreendimento era um sucesso. Às vésperas de completar 10 anos, os empreendedores resolveram comemorar, com uma nova campanha de venda. E anunciaram:
“Não percam a promoção: cada compra acima de 25 dias de trabalho de Gildara (sem incluir hora extra, como previa o regulamento), daria direito a um cupom. E cada cupom iria concorrer ao sorteio de uma Mercedes conversível, no valor de 10 anos (isso mesmo, 120 meses!!!) de mensalidade da escola da filha mais nova de Gildara, caso a menina fosse colocada em um colégio particular”.
Os empreendedores não tinham dúvidas de que a promoção seria um sucesso. Afinal, naquela época, nada menos que 30 mil pessoas frequentavam o shopping por dia. Esse dado não era estimado, mas comprovado pelos sensores de LED instalados nas entradas e nas escadas rolantes que vinham dos estacionamentos.
Mas eles não sabiam que aquele número era um pouco maior, apesar de a diferença não fazer diferença para eles e para ninguém como eles.
Afinal, mesmo com toda a moderna tecnologia aplicada, os sensores também não conseguiam captar a passagem das gildaras pelos raios de infravermelho.

7 comentários:

  1. João, você acaba de tornar-se um dos meus cronistas favoritos. Adorei o texto!

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  2. João!!!!!!! Esse texto me deu uma saudade imensa de conversar sempre com vc!
    Vida longa ao blog, já tô querendo o próximo, e pensando quando tudo vai virar livro!
    Vou divulgar já! beijos!

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  3. Cheguei com o post de Giselle, e daqui não quero sir mais!

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  4. Cheguei com o post de Giselle, e daqui não quero sir mais!

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  5. João, delícia de texto! Quero ler outros! Beijos

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  6. Uau!!! É por isso que sempre lhe chamo de Mestre, com "M"!!!

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  7. Uau!!! É por isso que sempre lhe chamo de Mestre, com "M"!!!

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