Gildara tinha quatros filhos. De dois maridos. Na
verdade, de um. O outro “não prestava, nunca ajudou em nada e acabou indo
embora”. Desde cedo, ajudava a mãe em
casa e tinha noção de dinheiro – ou da falta dele, fazendo contas o tempo todo.
Tira ali, espera sair o salário aqui, pega emprestado. E as coisas iam se
resolvendo.
Na época do Sarney, até que era melhor. Tinha o gatilho,
e o salário acabava subindo sempre. Veio o Cruzado, e a inflação sumiu. Pelo
menos por um tempo.
Depois, voltou à desgraça de sempre. Mas ela sempre
gostou de fazer contas e de ter noção do que o seu dinheiro podia comprar. Com o
Real, anos depois, a situação voltou a melhorar. O dinheiro era curto, mas dava
para planejar as coisas.
Quando se casou com Honório, largou da mãe e foi virar
mãe ela própria. Ter suas contas e dar seus pulos sozinha. Honório trabalhava
na Fiat, e até que o dinheiro era o bastante. Mas ele deu pra sair com outras
mulheres. E quando Gildara falou que daquele jeito não dava, aí é que não deu
mesmo. Honório sumiu com alguma vagabunda. Ou sozinho.
Agora ela estava se virando melhor com o emprego no
shopping. Trabalhava na praça de alimentação, limpando mesas, recolhendo copos
vazios e bandejas usadas.
Tinha umas amigas de trabalho. Entre uma mesa e outra,
dava para conversar um pouco e falar da vida. Mas acabava mesmo era pensando
muito, circulando entre as mesas com famílias, jovens, crianças, namorados e
senhoras.
Quase todos com sacolas chiques das lojas. Ao limpar as
mesas, sempre ouvia as conversas. Às vezes, conversas que não deveriam ser conversadas
na frente de alguém de fora, ou de um estranho.
Mas, como costumava dizer a Marildes, que também
trabalhava lá:
“Tenho a sensação de que a gente é invisível. Ninguém vê
nós. Ou parece que não vê. É como se nós não existisse de verdade. Eles só vê
mesa suja ou mesa limpa”.
Gildara entendia bem aquela coisa de parecer invisível,
apesar de ser gordinha e bunduda.
No dia a dia, ela sentia falta de ficar fazendo contas de
dinheiro. De ver os preços das coisas e calcular o que dava – ou não – para
comprar. Como fazia na casa da mãe e, depois, na sua também.
***
Um dia, viu uma mulher bacana ganhando um presente de um
homem que devia ser o marido, ali na mesa. Ao abrir a sacola, a mulher ganhou
brilho nos olhos e abriu um sorriso grande, de um tamanho que Gildara nunca
abrira. Era uma bolsa vermelha e brilhante.
Invisível, ela ficou perto e ouviu a conversa. Era
presente de aniversário de cinco anos de casamento. Pela embalagem, ela sabia
onde era a loja, no andar de cima.
Não deu outra. Na hora do café, em vez de ir para a área lá
fora, onde as outras fumavam, foi na vitrine da loja. Viu uma bolsa igual,
também vermelha e brilhante. Custou para ver o preço, de tão pequena a
plaquinha. Custava R$ 2.250,00 à vista.
De volta à praça de alimentação, ficou fazendo contas. O
casal já tinha sumido. A bolsa custava três meses do seu trabalho. Ela
precisaria ir 66 dias no shopping e trabalhar 528 horas para comprar uma igual.
Teria de pegar 264 ônibus lotados. Duzentos e sessenta e quatro...
Ela já tinha feito outras contas e sabia que limpava umas
200 mesas por dia, entre as outras tarefas. Colocou a maquininha da cabeça para
trabalhar. Sessenta e seis vezes duzentos... dava 13 mil e duzentos...
Puta que pariu... pensou ela, repetindo baixinho e
devagar... eu teria de limpar treze mil e duzentas mesas para ter aquela
bolsa... se fosse pagar de três vezes, ia chegar numas 20 mil mesas, calculou,
já em tom de brincadeira.
Imaginou a mulher bonita do sorriso largo, com a bolsa
vermelha e brilhante no ombro, suada, com os pés inchados no sapato de salto,
limpando 13 mil e duzentas mesas... em uma delas, estaria o marido olhando fixo
e apaixonado para ela, que não era invisível.
***
Na semana seguinte, foi a vez de um microcomputador. Um
notebook, ela sabia o nome. O dono dele, um jovem estudante, estava radiante na
mesa, ao lado dos colegas, todos de uniforme. Eram uns dez, de olhos cravados
na tela, que ia mudando de imagem a cada clique.
No meio daquela turma, pensou Gildara, posso até ficar
pelada para limpar a mesa, que vou ficar ainda mais invisível... acho que só os
garçons iriam prestar atenção...
O notebook era mesmo bonito. Fininho e prateado. Com
aquela marca da maçã na tampa, ficava fácil achar a loja.
Era pertinho, e não precisou esperar a hora do café.
Tinha de trocar o saco preto na lixeira grande, ao lado dela.
Na vitrine, os modelos eram muito parecidos. Mas achou o
fininho. Gildara não era de se assustar fácil, mas arregalou os olhinhos finos
quando viu o preço. Contou de novo os zeros, para ter certeza. Quatorze mil reais.
Em dólar era mais barato, tava escrito no quadrinho de preço, mas sabia que ali
só vendia mesmo em dinheiro brasileiro.
No resto do dia – entre mesas e cadeiras, Coca-Cola
derramada, batata frita no chão, resto de ketchup na bandeja, prato de macarrão
abandonado pela metade – ficou fazendo contas.
O tênis do filho mais novo custava cem reais. Não era
couro, mas durava seis meses. Catorze mil dividido por 100, o que dava 140.
Dividido por dois... 70. O notebook custava 70 anos de tênis para o filho mais
novo.
Ela deixou escapar uma gargalhada alta. Não conseguiu
segurar. Coisa esquisita, alguém diria na mesa. Uma gargalhada rindo sozinha
ali pertinho, saindo da boca de ninguém...
Como o filho tinha doze anos, ela poderia comprar tênis
até ele completar 82!!! Ela não, lógico, pois já teria morrido. Será que
invisível ocupa lugar debaixo da terra?, se pegou em dúvida...
***
Gildara não comentava com as amigas nada sobre aquelas
contas que fazia. Tinha a clara sensação de que seus cálculos não faziam bem a ninguém
como ela. E que, do outro lado, nas mesas, as outras pessoas não faziam ideia
também dos resultados de suas contas.
Mas aquilo tinha virado um vício, e ela não conseguia
parar.
Os chopes daquele senhor solitário até que não assustavam
tanto... ele chegava lá pelas oito e só ia embora às dez, depois de ler todo o
jornal. Edgar, o garçon da pizzaria (um negro engraçado, que para ela mais
parecia ator de filme de cinema), revelou-lhe: a conta dava uns 140 por dia,
somando mais dez chopes e uma pizza ou um macarrão.
Quanto será que dá isso, pensou, com a mente inquieta e
rascunhenta... 800 do salário dividido por 30 dias, dá quase 27 reais por dia.
140 dividido por 27...
Caraca!, disse ela, de novo em voz alta. Esse cara bebe,
em duas horas, uma semana do trabalho. Em 24 minutos, ele saboreia um dia
inteiro do meu suor! Quantas mesas limpas isso deve dar...?
***
Na segunda feira, o shopping abriu às dez. Assim como na
terça, na quarta, no sábado. Todos os dias do mês, todos os meses do ano. O
empreendimento era um sucesso. Às vésperas de completar 10 anos, os
empreendedores resolveram comemorar, com uma nova campanha de venda. E
anunciaram:
“Não percam a promoção: cada compra acima de 25 dias de
trabalho de Gildara (sem incluir hora extra, como previa o regulamento), daria
direito a um cupom. E cada cupom iria concorrer ao sorteio de uma Mercedes
conversível, no valor de 10 anos (isso mesmo, 120 meses!!!) de mensalidade da
escola da filha mais nova de Gildara, caso a menina fosse colocada em um
colégio particular”.
Os empreendedores não tinham dúvidas de que a promoção
seria um sucesso. Afinal, naquela época, nada menos que 30 mil pessoas
frequentavam o shopping por dia. Esse dado não era estimado, mas comprovado
pelos sensores de LED instalados nas entradas e nas escadas rolantes que vinham
dos estacionamentos.
Mas eles não sabiam que aquele número era um pouco maior,
apesar de a diferença não fazer diferença para eles e para ninguém como eles.
Afinal, mesmo com toda a moderna tecnologia aplicada, os
sensores também não conseguiam captar a passagem das gildaras pelos raios de
infravermelho.
João, você acaba de tornar-se um dos meus cronistas favoritos. Adorei o texto!
ResponderExcluirJoão!!!!!!! Esse texto me deu uma saudade imensa de conversar sempre com vc!
ResponderExcluirVida longa ao blog, já tô querendo o próximo, e pensando quando tudo vai virar livro!
Vou divulgar já! beijos!
Cheguei com o post de Giselle, e daqui não quero sir mais!
ResponderExcluirCheguei com o post de Giselle, e daqui não quero sir mais!
ResponderExcluirJoão, delícia de texto! Quero ler outros! Beijos
ResponderExcluirUau!!! É por isso que sempre lhe chamo de Mestre, com "M"!!!
ResponderExcluirUau!!! É por isso que sempre lhe chamo de Mestre, com "M"!!!
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