Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

domingo, 23 de agosto de 2015

O barbudo que chora

Jennifer tinha 3 anos, os olhinhos finos e um meio sorriso nos lábios. Cabelos encaracolados e um pouco de remela nos olhos; Marcosaurélio, 5 anos, era mais desconfiado e queria se aproximar mais dele, apesar de tímido. Foi chegando pertinho aos poucos; Kellen, de apenas 2 anos, tinha os bracinhos muito magros e a pele marrom. Era sapeca e foi logo passando as duas mãozinhas no rosto dele, sentindo o pinicar da barba; Uiliam era o mais cara fechada. Tinha 4 anos e não queria conversar. Mas não se afastou dos outros, ficando também em volta dele.

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Ele atravessou a cidade para fazer a reportagem. Era uma daquelas pautas de que tanto gostava – retratar a realidade da vida das pessoas esquecidas no meio da confusão da existência.
Quando chegava numa rua em que, de um lado, havia casas e, do outro, mato, sabia que estava realmente na periferia de tudo.  Foi o que aconteceu quando avistou seu destino – a creche de muro amarelo e portão vermelho.
Sua missão era até simples. O jornal iria fazer um caderno especial sobre as creches da prefeitura que passavam por dificuldades, com a eterna falta de verba para manter os filhos de pais que não tinham com quem deixá-los.

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Uiliam foi, aos poucos, se aproximando dele, de olho no caderno de anotações e nas frases ali rabiscadas; Kellen já estava sentada na perna dele, mexendo na máquina fotográfica e fazendo careta para futuras fotos; Marcosaurélio perdeu o medo e passava seu carrinho azul pela barriga dele, com se fosse uma estrada montanhosa; Jennifer ia chegando mais perto, devagarzinho.

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Ele foi recebido pela diretora da creche, que abriu todas as portas, consciente da força da imprensa. Ela falou das dificuldades e mandou recados a quem pudesse ouvir.
Foram então para o pátio, onde as crianças brincavam descendo no escorregador e afundando na areia. Ele foi conversando com uns e outros, mas a meninada queria mesmo era sair nas fotos.

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Marcosaurélio tomou coragem e pulou no colo dele, seguido por Kellen. Uiliam foi atrás e Jennifer também, para sua surpresa.

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Depois de meia hora de brincadeira com as crianças no pátio, a diretora se aproximou meio sem jeito e disse que queria lhe pedir uma coisa: “Se não quiser, não tem problema. Pode dizer que não”.

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Um tanto perdido no meio da criançada, ele nem notou quando os dois meninos e as duas meninas foram se aproximando aos poucos, meio com vergonha, levados pela diretora.

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De repente, a vida parecia começar a passar em câmara lenta. Jennifer, Marcosaurélio, Uiliam e Kellen olhavam para ele de pertinho. Um a um, iam passando as mãos em seu rosto, até chegarem à barba grossa e espessa. Faziam uma mistura de carinho e exploração.

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O relógio também parecia passar em câmara lenta no meio daquela tarde. O pátio foi sumindo em volta, deixando a casa amarela da periferia cada vez mais longe, em direção a um futuro que jamais existiria...

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Marcosaurélio, Jennifer, Uiliam e Kellen não cabiam de alegria ao lado dele. Achavam que não ia dar tempo de ir em tudo. Do carrossel à roda gigante; do carrinho bate-bate ao minhocão. Será que a gente pode voltar no domingo que vem?

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Depois do banho e do jantar, era hora de preparar o lanche para a aula do dia seguinte. Será que a gente pode ir lá naquele parquinho da escola na hora do recreio, onde um monte de meninos fica brincando?

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No final do ano, iriam sair para ver as luzes de Natal, naquele bairro de árvores grandes. Quantas luzinhas enfeitavam as ruas e deixavam tudo tão iluminado. Será que podemos também enfeitar a casa da gente?

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A diretora olhou o relógio, controlando a hora de levar as crianças de volta para as salas. Estava também preocupada com o tempo. Se chovesse, ia ter de colocar todos no salão, onde não havia goteiras.

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Jennifer soltou uma gargalhada deliciosa e gritou, pulando na cama: Ah, eu sei que o coelhinho da Páscoa é você!!! Ele não existe!!

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Marcosaurélio estava de olhos bem abertos, encantado, vendo o livro grande e colorido do museu com a imagem da Mona Lisa na capa, com um meio sorriso só para ele.

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Uiliam olhou no espelho e ajeitou a camisa de futebol, que parecia um pouco grande. Estava com medo, mas feliz de ter sido chamado para o time principal que iria jogar no domingo.

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Kellen não cabia em si de alegria, com a roupa de balé e aquelas sapatilhas que apertavam tanto os pés. Queria chamar a mãe para ir ver a apresentação daquela tarde.

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Por fim, a diretora levantou-se e tocou o pequeno sino, anunciando o fim do recreio e do lanche. O relógio começou de novo a andar depressa, destruindo a câmera lenta que levava aos sonhos. Daqui a pouco, as mães, muitas com pressa para preparar o jantar e dormir cedo, começariam a chegar.

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As mãozinhas de Marcosaurélio, Jennifer, Uiliam e Kellen foram se afastando aos poucos da barba dele, de volta à realidade.

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A diretora e ele estavam sozinhos no pátio. Ela se aproximou meio sem jeito, e disse que queria lhe pedir uma coisa: “Se não quiser, não tem problema. Pode dizer que não”.
Diante do silêncio conivente dele, ela falou: “É que tem umas crianças aqui querendo saber se podem pegar em sua barba. Eu queria perguntar se você deixa”.
Sem entender bem tudo aquilo, ele disse, da forma mais simples:
-- É claro que podem.
Ele ouviu, então, uma das frases mais marcantes de sua carreira, que ficaria retumbando em sua mente pelo resto da vida:
-- Elas pediram para passar as mãos na sua barba porque nunca tiveram um pai...

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Ele fechou o portão vermelho, deixando para trás a creche de muro amarelo que ficava no fim do mundo e entrou no carro.
Ligou o motor, deu a partida, virou a esquina e parou. Segurou com força o volante com as duas mãos e, então, chorou.
Chorou muito, como se fosse chorar para sempre, sem conseguir evitar que a realidade da vida engolisse seu coração de repórter.



11 comentários:

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    1. Paula, obrigado pelo pelas duas palavras - simplesmente lindas!

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  3. Vc continua um barbudo revolucionário, chorão e que gosta de fazer os outros chorarem. #lindo

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    1. Íris, sua sumida, esse negócio de revolucionário que chora parece coisa daquele outro barbudo, que falou em endurecer sem perder a ternura, jamais...

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  4. Parabéns, professor, por se permitir viver isso com eles é chorarem por permitir a eles tocar a barba de alguém que tem amor no coração.

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    1. Claudia, querida, só quem tem amor no coração percebe quem tem amor no coração. Obrigado pela palavras carinhosas!

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  5. é muita tinha azul nas veias, é muita tinta vermelha no coração! obrigada, caro jornalista!

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  6. Muito legal, João. Continue cultivando sua barba e publicando boas histórias como essa.

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  7. Entre os corredores do SG eis que surge, em meio aos ditos grandes mestres, você João. Simplesmente o cara de que jamais iremos nos esquecer. Obrigado, viu?

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  8. Chorei junto com o barbudo! Texto lindo, João!

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