Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

domingo, 17 de janeiro de 2016

A melhor coisa da vida

Valdirene acordou em sobressaltos naquele dia. Perdera a hora, de tão cansada que estava, após uma semana de muito trabalho como lavadeira e passadeira em casa de família. Passava das oito, e o marido não estava do seu lado.

Sem saber bem por que, sentiu uma forte tristeza vinda do fundo do coração e do alto da alma. Não tinha remédio para aquilo. Mas estava assustada com o silêncio da casa e, ainda tonta de sono, caminhou rapidamente até o quarto onde os seis filhos dormiam.

Só viu roupas de cama reviradas e colchões com jeito de já estarem frios. Valdirene teve um sentimento de coisa muito ruim acontecendo, mas não sabia bem o que era.

 Ela vagou pelo barraco no Morro das Pedras, em Belo Horizonte, tentando conter a ansiedade pela casa vazia. Já era para os filhos – seis, ao todo, contando o de 19 anos que ainda morava com eles – estarem chutando porta, pedindo café, chorando nos cantos ou fazendo fila no banheiro.

Vinte minutos se passaram e Valdirene não tinha coragem de abrir a porta e perguntar pelos filhos para a vizinha de frente, temerosa que estava. Afinal, aprendera desde cedo a temer as intuições de mãe.

Onde estariam eles...?

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Ela se apegou a crianças ainda muito cedo, no Vale do Jequitinhonha, no Norte de Minas. Aos dez anos, já trabalhava como babá para ajudar em casa.

Poucos anos depois, teve o primeiro filho, que depois foi aceito pelo marido, com o qual teve mais cinco crianças.

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De repente, naquela manhã de domingo, a mãe assustada sentiu um grande alivio no coração, logo depois das nove horas. Era a algazarra da meninada subindo a escada de frente do barraco. Aquele barulho bom de ouvir lhe tirou quilos das costas.

E então Valdirene se lembrou de tudo: lógico! Era domingo. E todo domingo, os filhos e o marido saíam cedo para comprar pão lá no asfalto! Mas, naquele dia, quando eles entraram na sala, não trouxeram só o embrulho da padaria.

Os dois menorzinhos lhe entregaram também um buquê de rosas vermelhas, enquanto todos gritavam: “surpreeeesaa!!”. Foi quando a ficha caiu – não era um domingo qualquer, mas o Dia das Mães, afinal!

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Cirando, 19 anos, Samira, 13, Jéssica, 12, Felipe, 10, Samuel, 8 e Anna Karolina, 6, ao lado do marido, enchiam Valdirene de beijos e carinho. Naquela hora, ela pensou alto, entre pães, rosas, copos de café e muitos abraços: “ser mãe é a melhor coisa da vida”.

Como sempre acontecia quando estava muito feliz, ela pensou no que seria da vida de cada um dos seus filhos. O que eles fariam dali para frente. Ela tinha medo de morrer ainda nova e deixar os filhos sozinhos.

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Meses depois daquele domingo com flores, em janeiro do ano seguinte, tudo aconteceu. Não faria mais sentido pensar no rumo dos filhos pela vida afora.

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Ela ficou várias semanas sem conseguir conversar com ninguém depois que tudo aconteceu. Somente em meados de abril, ela começou a dar conta de falar. E relatou ao repórter:

-- O mais estranho é que não me lembro do rosto deles, da voz, de muita coisa. Deus tirou muita coisa da minha cabeça para eu não endoidar. 

E completou:

-- Às vezes, acho que estão na escola, na creche. Meus meninos estudavam o dia todo. Acho que ainda vão chegar no fim da tarde. 

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Valdirene acordou em sobressaltos naquele dia. Sentiu uma forte tristeza vinda do fundo do coração e do alto da alma. Não tinha remédio para aquilo. Mas estava assustada com o silêncio da casa e, ainda tonta de sono, caminhou rapidamente até o quarto onde os seis filhos nunca mais dormiram.

O remédio que tomara na noite anterior era forte e poderoso. Ela custou a se levantar e viu que estava na casa emprestada pelos vizinhos, onde passou a morar com o marido.

Num sobressalto, ela se deu conta de que era domingo. Mas não um domingo qualquer. Era o Dia das Mães.

Era o primeiro Dia das Mães depois do último Dia das Mães.

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Meses antes, numa madrugada de janeiro daquele ano, um temporal que caiu em BH arrancou dois pés de manga que ficavam logo acima do seu barraco. Com eles, foram arrastados quase todos os cômodos de sua casa, principalmente o quarto onde os seis filhos dormiam.

Cinco deles morreram ainda nos escombros; Felipe chegou a ser resgatado e levado ao hospital, mas também não resistiu.

Um dia antes, um engenheiro da prefeitura fizera uma vistoria no barraco de Valdirene e afirmara que a casa dela era mais segura que a dele.

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Aquela menina que começou a cuidar de crianças aos 10 anos ainda relatou ao repórter, lembrando aquele domingo do ano anterior:

-- O presente deles eu vou querer, todo ano. Como se estivessem aqui. 

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Aos poucos, o tempo começou a passar.

E Valdirene foi descobrindo que ainda carregava dentro de si uma força que nenhuma tempestade iria arrancar dela. Devagarzinho, foi recuperando uma vontade de viver que parecia ter vindo ao mundo junto com ela. E que a fazia seguir em frente.

Num domingo de sol, ela começou, junto com o marido, a fazer planos de adotar uma menininha. Depois do sexto filho, os médicos ligaram suas trompas. Ela sorriu para ele, lembrando que a primeira casa onde moraram, ao chegarem em BH, ficava na rua Esperança, perto de onde perderam tudo.

E voltou a dizer baixinho, quebrando o silêncio da casa nova, onde não havia mais algazarra no domingo – e nem em dia nenhum:

-- Ser mãe é a melhor coisa da vida.

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